José Saramago é Nobel da Literatura em Outubro de 1998 e logo na Primavera do ano seguinte marca presença na Feira do Livro de Leiria. Laura Esperança organiza o evento em representação da livraria Americana e o conhecimento, que é anterior, torna-se mais próximo. Entre telefonemas e troca de correspondência, Saramago terá sido das primeiras pessoas a saber da candidatura à Junta de Freguesia de Leiria. A novidade, partilhada durante uma viagem de carro, sinaliza a amizade que os uniu, sobretudo, entre 1999 e 2004, período em que o escritor esteve em Leiria por quatro vezes. “Muito sensível ao sentimento alheio e às desigualdades”, “humilde”, “tanto falava de coisas de importância mundial como contava uma graça”, recorda a antiga autarca. “Um sábio”, que tinha “prazer em conversar”.
Ourém é outro concelho, na região, onde as memórias em torno de José Saramago continuam bem vivas, agora que, na próxima quarta-feira, 16 de Novembro, se assinala o centenário do nascimento do único português Nobel da Literatura. Sérgio Ribeiro dá como exemplo a participação do poeta e ficcionista na sociedade Som da Tinta, editora e livraria com espírito de cooperativa, onde chegou a apresentar o romance A Caverna.
“Esteve várias vezes aqui em minha casa”, conta o antigo autarca e deputado europeu. “Um excelente amigo, uma relação bastante forte”.
Na década de 70, coincidem no Diário de Lisboa. Sérgio Ribeiro elogia o “trabalhador incansável da escrita”, que “aprendeu a cultura nas bibliotecas” e “fez-se a si próprio”, mas “sem nunca esquecer as raízes”.
Além de participar na Feira do Livro de Leiria, em 1999 José Saramago desloca-se à Escola Superior de Tecnologia e Gestão (ESTG) do Politécnico de Leiria, a 27 de Maio, para apadrinhar a futura biblioteca da instituição. Regressa a Leiria em 2000 e é homenageado pela Câmara, que lhe atribui a medalha de grau ouro. Isabel Damasceno, à época presidente do município, guarda a lembrança de um homem “reservado”, um “bocadinho austero, não demasiado efusivo, mas simpático q.b.”, com quem se cruzaria mais do que uma vez em “circunstâncias formais” e “institucionais”.
Em 2001, pelo terceiro ano consecutivo, Leiria volta a acolher o Nobel da Literatura, que participa no 1.º Encontro de Escritores de Língua Portuguesa no auditório da ESTG e recebe o título de professor coordenador honorário do Politécnico de Leiria. Saramago aproveita para dar uma aula focada na cidadania activa e na luta contra as desigualdades. A imprensa cita as frases mais fortes da lição: “É uma obscenidade que se possa morrer de fome”, “a democracia está a ser todos os dias esvaziada de conteúdo”, e ainda, por causa de uma sonda da Nasa a caminho do espaço exterior: “É tão importante assim saber se há água em Marte? Contaminámos e poluímos toda a água da terra, com a indiferença total e absoluta dos poderes”.
Ambos os dias no Politécnico de Leiria, em 1999 e em 2001, são acompanhados, na qualidade de director da ESTG, por Nuno Mangas, que até hoje mantém o exemplar do Memorial do Convento assinado com dedicatória para os filhos. “O primeiro foi um momento mais intimista, dentro da comunidade, o segundo teve muita projecção”. Saramago haveria de voltar ao Politécnico de Leiria uma outra vez, em 2004, novamente em Abril, para apresentar o romance Ensaio Sobre a Lucidez na nova biblioteca da ESTG, em funcionamento desde 2003 e baptizada com o seu nome.
Além de cartas enviadas desde Lanzarote, iniciadas com a saudação “estimada amiga”, nos preparativos das visitas a Leiria, Laura Esperança, que ao tempo pertencia à direcção da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros, preserva os livros autografados pelo Nobel da Literatura e a recordação de uma certa afinidade, desenvolvida gradualmente. “Deixou-me muitas saudades. É um marco na minha vida muito bonito”.
Muito antes do reconhecimento internacional, já os caminhos de José Saramago se haviam cruzado com Leiria e com a região. No roteiro Viagem a Portugal, editado pela primeira vez em 1981, há referências a Ourém, Fátima, Vieira de Leiria, Praia da Vieira, Marinha Grande, Batalha, São Jorge e Cós, Maiorga, Nazaré, Alcobaça, Caldas da Rainha, Óbidos, Atougia da Baleia, Ferrel e Peniche.
Entre críticas ao comércio religioso em Fátima e a experiência de uma fábrica de vidro na Marinha Grande, sobressai o “deslumbramento” com a Mata Nacional de Leiria, que considera “incomparável”. Em Leiria, descreve a Sé – “não se pode dizer que ofereça extremas compensações espirituais, se exceptuarmos, claro está, as do foro religioso” e o Castelo, onde se impressiona com “a magnífica varanda do palácio” e com o olhar sobre a cidade: “Leiria vista daqui é bonita”.