Construída em 1917, a partir do projecto de Ernesto Korrodi, a Casa Leal, localizada no Coimbrão, concelho de Leiria, foi, desde os seus primórdios, palco de inúmeras tertúlias culturais, promovidas pelos seus proprietários. Gente radicada em Lisboa, onde travava conhecimento com alguns intelectuais da época, que convidava para as temporadas que passavam no Coimbrão.
Num desses encontros seriam lançadas as sementes para a constituição da revista Seara Nova, fundada em 1921 por Raul Proença, Aquilino Ribeiro, Jaime Cortesão, Raul Brandão e outros intelectuais descontentes com a decadência da I República e que se propunham a envolver a elite cultural e científica portuguesas num projecto de reforma política e social do País.
Por ocasião do centenário da Seara Nova, cujo programa de comemorações decorre até Outubro, o JORNAL DE LEIRIA recorda alguns dos episódios que relacionam a revista com a Casa Leal.
A monografia Coimbrão, uma história por revelar, editada em 2017 pela Junta de Freguesia, conta que a formalização da constituição da revista aconteceu em Abril de 1921, “numa das muitas reuniões realizadas pelos seus elementos” na casa da família Leal.
Este dado foi confirmado por João Pereira Dias, casado com Maria Manuel, filha de Armando Leal, que era amigo de Aquilino Ribeiro,[LER_MAIS] o escritor que imortalizou a vida e a luta pela sobrevivência dos pescadores da praia do Pedrógão no romance a Batalha sem Fim, que era um frequentador da casa.
Lucília Letra, uma das autoras da monografia, recorda que no encontro com o casal, entretanto falecido, entre as histórias da casa e da família se falou da Seara Nova. Um dos episódios relatados envolve a fotografia do grupo fundador da revista, tirada em Abril de 1921 no palacete.
“Foi-me contado que, embora tenha sido apagado de algumas imagens que circulam publicamente, o padre Horácio Biu, pároco do Coimbrão na época, não estando entre os fundadores [da Seara Nova], participava nas tertúlias e esteve na reunião onde foi formalizada a constituição da revista”, refere.
A Seara Nova foi oficialmente constituída a 15 de Outubro de 1921. A sua história voltou a cruzar-se com o Coimbrão meio século depois, com a escolha do palacete dos Leais para a celebração do 50.º aniversário da revista.
O encontro teve lugar no dia 25 de Abril de 1971 e juntou fundadores e colaboradores da publicação, mas também artistas e intelectuais. Fernando Namora, Ary dos Santos, Adriano Correia de Oliveira, José Manuel Tengarrinha e Silva Resende foram algumas das personalidades presentes, como descreve a edição de 1 de Maio desse ano do jornal Região de Leiria.
Nessa edição, dá-se ainda conta da participação de algumas pessoas da região, como José Travaços Santos (etnógrafo da Batalha), Manuel Poças das Neves (‘Mapone’, residente em Fátima) e Luís Salgado de Matos (historiador já falecido com raízes familiares em Alqueidão da Serra, Porto de Mós).
“Foi um dia memorável”, diz José Travaços Santos, que participou no encontro a convite do anfitrião, o “amigo Armando Leal. Entre as memórias desse dia, recorda a intervenção de Ary dos Santos, que “recitou poemas de forma sublime”, a presença do professor e jornalista Mateus Crespo e o “encanto” com que os convidados foram recebidos.“Foi uma honra ter participado na sessão”, confessa.
De acordo com o relato publicado no Região de Leiria, durante o encontro, Manuel Leal leu uma declaração escrita pelo irmão, Armando Leal, que não o pode fazer. “Tinha um problema na voz”, explica Travaços Santos.
Nessa intervenção, o anfitrião agradeceu a escolha da casa como o local para “a primeira das manifestações planeadas de tributo, reverência e culto aos fundadores da Seara Nova”, precisamente onde a revista foi “idealizada e ventilada, aqui no Coimbrão, nesta casa, quando de uma visita que faziam a José das Neves Leal em 9 de Abril de 1921, memorável data”.
O semanário dá ainda nota da referência que Armando Leal fez a alguns dos notáveis que, além de Aquilino Ribeiro e de outros fundadores da Seara Nova, frequentaram a casa “entre os anos de 1921 e 1930”, como João de Barros, João Soares e Almada Negreiros.
Por seu lado, no artigo que publicou no jornal Beira Baixa sobre o 50.º aniversário da Seara Nova, Manuel Poças das Neves conta que os jardins do palacete – localizado junto à EN109-9, que liga o Coimbrão e a praia do Pedrógão – foram “transformados em salas de reunião” e que “todos os aposentos” da casa “estavam franqueados aos ‘seareiros’”.
Fala ainda da arte que se “esbanjava a rodos, quer pela voz do poeta José Carlos Ary dos Santos, quer pela guitarra do Dr. Braga ou pela viola com que se fazia acompanhar o jovial Adriano Correia de Oliveira”.
O encontro, onde tinham participado opositores e defensores do regime, acabou por motivar uma interpelação da PIDE, à qual Armando Leal terá respondido que “para sua casa convidava quem queria”.