O barulho que se ouve à hora do recreio na Escola Básica 2, 3 de Marrazes, em Leiria, dificulta, por vezes, a comunicação. Mas é um som alto ‘saudável’. Com os telemóveis desligados, sem lives nem likes os alunos passaram a conviver mais.
Dobrar a ombreira da porta assim que as aulas chegam ao fim – o toque há muito que também foi abolido nesta escola – para quase de imediato se sentarem, alinhados, agarrados ao telemóvel é uma imagem que faz parte do passado.
Agora, vêem-se várias bolas a saltitar no campo de piso de alcatrão, onde rapazes e raparigas aproveitam os minutos do intervalo para se divertirem. Há quem corra para a frente e para trás à procura do amigo que ficou do outro lado ou pequenos grupos sentados em bancos a conversar.
A mesa de pingue-pongue está disponível a ser usada e a direcção está a preparar a instalação de matraquilhos e algum material desportivo para serem mais uma opção para os jovens preencherem o tempo de intervalo sem pensar nos telemóveis.
Tudo isto é uma novidade nesta escola, que desde o início deste ano lectivo, determinou, com o apoio dos pais, abolir o uso do telemóvel dentro das instalações escolares. A decisão não agrada a todos, mas a maioria rendeu-se aos bons resultados que a medida está a ter, após um mês de implementação. Apesar de alguns alunos discordarem da proibição, a maioria acaba por admitir que a ausência do equipamento dentro da escola trouxe benefícios.
“Convivemos e conversamos mais e sobre coisas que não o fazíamos antes. Nota-se que há mais brigas agora. Antes, saímos das aulas e era automático: pegávamos de imediato no telemóvel”, assumem Maria e Bruna, alunas do 9.º ano.
Íris, Laura, Alícia e Luna, do 8.º ano, têm mais dificuldade em ver o lado positivo e lamentam que não possam ter o telemóvel quando estão sozinhos no recreio ou não possam contactar os pais sempre que desejam. “Com o telemóvel ouvíamos música e tínhamos sempre alguma coisa para fazer. Quando queremos ligar aos pais nem sempre nos deixam na portaria.”
Juan, também do 8.º ano, nunca foi agarrado ao telemóvel, pelo que para si pouco ou nada mudou. No entanto, reconhece que os colegas convivem mais uns com os outros. Esta é também a opinião de um grupo de alunos do 6.º ano. Reunidos no campo de futebol, a praticar uns remates e trocas de bola, rapazes e raparigas começam por dizer ao JORNAL DE LEIRIA que é “horrível” não ter telemóvel.
“Se tivermos um ‘furo’ não podemos ligar aos pais e não nos deixam sair. Só se for uma urgência. Agora passou a haver mais brigas”, afirmam Angélica, Ilyas, Assiya, Marta, Vitória, Sara, Mafalda, Diana e Luíza.
Aos poucos, acotovelam-se para admitir que até passaram a “socializar e a conviver mais uns com os outros”. “Podemos pôr a conversa em dia e evitam-se as fotos que tiravam aos colegas em situações menos simpáticas e depois publicavam-nas. Havia muitas pessoas que passavam o tempo todo no telemóvel”, contam.
A possibilidade de estar contactável e poder fazê-lo a qualquer momento é o principal problema: “o meu irmão anda também aqui na escola. Queria dizer-lhe que íamos juntos para casa, mas não sabia dele e não tinha como o contactar”, revela uma das alunas.
Os jovens notam ainda que “há pessoas que parece que não sabem fazer nada mais além de usar o telemóvel”. “Aquela casinha de madeira [apontam] não era usada. Agora vão para lá, mas já a estragaram. O telemóvel era uma forma de não fazerem asneiras”, criticam, reconhecendo ainda que a atenção nas aulas aumentou sem a distração do telemóvel por perto.
Na portaria, um grupo de três rapazes pedia à funcionária uma bola para jogar. Ao ouvirem a conversa do JORNAL DE LEIRIA interrompem: “acho muito bem. Tenho mais amigos do que tinha. Não conhecia este [aponta para o colega a quem está abraçado] e agora somos amigos”, atira. Isabel Pereira, Sónia Frade e Sandra Duarte reconhecem que a ausência do telemóvel trouxe “paz e sossego” às aulas.
As docentes adiantam que havia sempre alguma coisa relacionada com o aparelho: “ou vibrava porque recebiam uma mensagem, ou estavam a mexer com a desculpa de ver as horas”, diz Isabel Pereira, professora de Português. Docente de Matemática, Sónia Frade relata o caso de um jovem cujos pais mostravam preocupação por não se integrar na turma. “Sem telemóvel, este ano está totalmente entrosado com os colegas. Já não tem o telemóvel para se refugiar.”
Superou as expectativas
Fotografias aos professores e aos colegas, a filmes dentro da sala de aula, ‘bocas’ em grupos online, que se transformavam em bullying acabaram. “Não estamos a inibir a tecnologia na escola, estamos a disciplinar o seu uso. Há uma restrição para a utilização para fins lúdicos. Podem fazê-lo em casa, sob a orientação dos pais, mas é menos tempo que passam ao telemóvel. Havia uma crescente dependência da tecnologia na escola, com prejuízo directo na autonomia das crianças e, sobretudo, no processo de socialização”, constata Jorge Edgar Brites.
O director confessa que esperava uma maior dificuldade na implementação da medida. “Superou todas as expectativas. Não esperava que corresse tão bem.” As coisas estão a correr muito bem justamente porque houve um envolvimento dos pais. A medida foi tomada com o apoio das sete associações de pais do agrupamento. Tudo começou quando à pergunta ‘Para que é que é preciso o telemóvel na escola?’ os órgãos competentes da escola perceberam que a resposta era simples: “nada”.
“Temos forma de entrar em contacto com os pais. A criança nunca fica incomunicável. Em todas as situações que se justifique os alunos podem pedir para estabelecer ligação aos pais”, sublinha. Mais de 80% das ocorrências disciplinares nos últimos anos estavam relacionadas com o uso indevido do telemóvel, como “gravação de aulas, bullying, mensagens a caírem constantemente no período lectivo, muitas vezes enviadas pelos próprios pais”. Por outro lado, defende a necessidade de uma maior autonomia dos jovens e dos próprios pais.
“Tínhamos pais a ligar para os filhos durante as aulas. Qual é o aluno que fica tranquilo o resto da aula sabendo que o pai ou a mãe lhe tentou ligar? Tinha pais com aplicações para controlar a posição dos filhos na escola e questionavam a escola: ‘O meu filho esta sempre lá ao fundo, o que se passa?’. Isto é um atentado à individualidade da criança”, revela.
Jorge Edgar Brites garante que só foram detectadas quatro infracções, em cerca de 600 alunos. As faltas foram cometidas no recreio por uso indevido do telemóvel. Foram sancionados com a pena mais leve: o aparelho foi confiscado e entregue no próprio dia ao encarregado de educação. Se a situação se repetir, o regulamento prevê a apreensão do aparelho por três dias e à terceira vez é aberto um processo disciplinar.
Desengane-se quem pensar que Jorge Edgar Brites é anti-tecnologia. O director sublinha que até tem formação na área – mestrado em Multimédia educativa – e defende a utilização dos computadores em sala de aula. “Marrazes sempre foi uma escola na linha da frente da tecnologia. Percebo a importância dos nossos jovens estarem alinhados com a evolução tecnológica, mas sentíamos uma crescente dependência da tecnologia e até dos pais e filhos. Tivemos situações de alunos que se magoavam e que os pais chegavam primeiro à escola do que o jovem à enfermaria”, revela.
Jorge Edgar Brites reconhece que há mais “conflitos naturais” próprios da idade e do crescimento, pois há “mais disputa e brincadeira”. Estão atentos ao aumento destas ocorrências.
Pode ligar à minha mãe?