Integrar as listas da Unesco do Património Cultural Material ou Imaterial da Humanidade permite o reconhecimento internacional, o prestígio e visibilidade global de práticas culturais ou tradições, a sua salvaguarda, passando pela valorização cultural e o valor que o turismo cultural pode trazer a um território.
Na região de Leiria, além dos monumentos que já estão na lista – Mosteiro da Batalha, desde 1983, e o Mosteiro de Alcobaça, desde 1989 -, há, pelo menos, três exemplos de tradições e património material que se diz serem merecedoras de figurar nestas listas: a procissão com luminárias de Nossa Senhora do Fetal, no concelho da Batalha, a técnica de construção dos muros de pedra seca, que servem de marca registada aos territórios cársicos humanizados, como os das serras de Aire e Candeeiros e de Sicó, e o Santuário de Fátima.
Mas antes de se poder avançar para a candidatura a Património da Humanidade da Unesco, é necessário figurar no Inventário Nacional do Património Cultural.
É um processo longo, moroso, complexo e com várias etapas.
A procissão do Reguengo do Fetal já entregou o dossier de candidatura aos serviços do Património Cultural, I.P., antiga Direcção-Geral do Património Cultural e os muros de pedra estão a recolher informação para fazer o mesmo.
Já o Santuário de Fátima diz que ainda é cedo para se pensar no tema.
Quando fé e arte se unem
Foi uma visão mística de Nossa Senhora, algures entre os séculos XV e XVI, por uma pastorinha, em tempo de grande fome e de miséria, que levaria, por acção papal, à criação do Santuário do Reguengo do Fetal, e ao estabelecimento de peregrinações até à aldeia do concelho da Batalha.
A celebração religiosa integra três procissões: na primeira, realizada no último sábado de Setembro, à noite, a imagem de Nossa Senhora desce da ermida para a igreja paroquial.
Na segunda, no sábado seguinte, também à noite, faz o percurso de regresso, e, no domingo de manhã, começa uma nova procissão a partir da igreja em direcção à ermida, onde é celebrada missa.
Durante as procissões nocturnas, todos os caminhos entre a igreja paroquial e o Santuário de Nossa Senhora do Fetal são iluminados com pequenas lamparinas feitas com cascas de caracóis.
Mas a iluminação só terá aparecido no século XIX.
Antes, o cortejo seria realizado à luz de velas ou de archotes, conta Ana Moderno, conservadora de museu da autarquia, que liderou a equipa que criou a candidatura.
Os detalhes estão presentes na proposta de pedido de inventariação, que contém “documentação pertinente”.
Só após a apreciação da tutela é que a “festa dos caracóis”, como é popularmente conhecida, poderá ingressar na lista nacional do património e depois, como pretende a junta de freguesia local, se poderá iniciar a candidatura a Património Imaterial da Unesco.
“São processos morosos. Dos caretos à dieta mediterrânea, ao fado ou cante alentejano, os cerca de 20 exemplos de património imaterial português classificado pela Unesco, foram, primeiro, inscritos na lista nacional”, explica Ana Moderno.
A responsável adianta que estas candidaturas empregam especialistas.
“No caso da Festa dos Tabuleiros de Tomar, houve uma equipa com antropólogos, que estiveram anos a trabalhar no processo.”
No Reguengo do Fetal, foram os técnicos do Museu da Comunidade Concelhia da Batalha, com o apoio da Junta de Freguesia do Reguengo do Fetal e da Escola Superior de Educação e Ciências Sociais de Leiria, quem, através da aplicação do método etnográfico, realizou entrevistas, observações de campo, criou material audiovisual e fez recolha de documentação.
Em Fátima, durante um evento público realizado no ano passado, o historiador de arte Vítor Serrão defendeu a candidatura do Santuário a Património da Humanidade da UNESCO, pela qualidade do conjunto monumental e artístico ali existente.
No entanto, trata-se de uma proposta que o Santuário “não pretende, para já”, concretizar, confirmou, esta semana, o JORNAL DE LEIRIA.
Numa tomada de posição, o Santuário esclarece que “tem valorizado sempre a dimensão cultural e artística” por acreditar “que a linguagem da arte e a via da beleza são caminho imprescindível para a difusão e aprofundamento da mensagem [daquele] lugar”.
Mas acrescenta: “o Santuário não pretende, para já, avançar com qualquer candidatura, quer porque, tratando-se de património relativamente recente, com não mais de um século, ainda não tem o reconhecimento unânime que uma candidatura destas exigiria, quer por se tratar de um conjunto patrimonial e artístico ainda em crescimento”.
Ainda segundo o Santuário, “acresce que, além do conjunto patrimonial e artístico, há um património imaterial de inegável importância, que teria igualmente de ser ponderado, como sejam os casos da procissão de velas ou da procissão do adeus”.
O Santuário conclui: “em suma, não fechamos nenhuma porta, mas entendemos não ser ainda o momento”.
As declarações de Vítor Serrão aconteceram no contexto da apresentação do livro Fátima e a criação artística: o Santuário e a Iconografia, da autoria de Marco Daniel Duarte, em que assina o posfácio.
Vítor Serrão, que é professor catedrático jubilado da Universidade de Lisboa, assinalou, na ocasião, que o Santuário “é um conjunto que concorre, por todos os valores estéticos, espirituais, hierofânicos e artísticos, para uma candidatura a Património da Humanidade que o é, de direito pleno”, pode ler-se na notícia publicada no site oficial do Santuário, de 14 de Setembro de 2023.
“O melhor da história da arte em Portugal, o melhor da mão-de-obra artística em Portugal, trabalhou para Fátima. Artistas crentes e não crentes”, sublinhou Vítor Serrão, destacando “a qualidade da arqui- tectura, da pintura, da escultura, dos vitrais, do mobiliário litúrgico e da demais arte”.
É o caso de António Teixeira Lopes, Irene Vilar, Lagoa Henriques, Zulmiro de Carvalho, Clara Menéres, José Aurélio, Marko Rupnik, Jorge Barra- das, Eduardo Nery, Pedro Calapez, Catherine Greene, Robert Schad e Fernanda Fragateiro, entre outros.
Arte de “saber fazer” muros
A intenção de inscrever a técnica de construção dos muros de pedra seca na lista de Património Imaterial da Unesco foi anunciada quando Porto de Mós candidatou, em Junho de 2020, os seus muros de pedra seca às 7 Maravilhas da Cultura Popular de Portugal.
O processo começou por ser liderado pela autarquia de Penela, que, à época, ocupava a presidência rotativa da associação de desenvolvimento local Terras de Sicó e foi considerada uma iniciativa territorial, à qual se juntou a Associação de Desenvolvimento das Serras de Aire e Candeeiros, para uma candidatura do “saber-fazer dos muros de pedra”, num cenário mais abrangente do Sul da Europa.
“É um dos nossos projectos mais importantes. Temos muita expectativa que a candidatura seja aprovada”, resume João Paulo Guerreiro, presidente da Câmara Municipal de Alvaiázere, que, actualmente, preside a Terras de Sicó.