Seu Jorge, este é mais um regresso a Portugal e mais um acolhimento cheio de carinho?
Eu gosto muito daqui. Do País, do povo, da música, da cultura, da literatura e da maneira de vocês. Acho que é uma sorte muito grande ter esse parentesco no Mundo. Caramba! Se eu tivesse de procurar outro lugar onde a gente tivesse uma ligação tão forte quanto essa, talvez seja África… talvez África que tem também uma relação assim forte com o Brasil, por conta do povo. Mas Portugal é… nossa! É uma ligação muito forte.
Sente que o Seu Jorge e a sua música são embaixadores do Brasil e da Lusofonia no Mundo? O seu nome é conhecido a nível mundial.
Acredito que sim. Tenho o enorme privilégio de viajar pelo mundo, realizando esse sonho de cantar e de fazer espectáculos, mas o maior privilégio de todos é poder cantar na nossa língua, sabe? A maior parte do tempo, canto em português e vejo muita gente no Mundo absorvendo isso, mesmo não entendendo, muitas vezes, o que a gente está falando mas, percebendo através do sentimento universal e da frequência da música e da canção. A gente vê que ela provoca muita ternura e que existe um compromisso com tudo aquilo, com a música. Eu venho aqui, em Portugal, porque o povo, o público, é muito respeitoso, ele aceita muito, ele quer muito receber, sabe? Todas as vezes que eu estive aqui, fazendo concertos, recebi muito apoio do público. Há uma sensação de que nunca vai dar errado, sabe? Eu me sinto muito bem recebido na porta do seu País e me lembro que a primeira vez que eu vim aqui foi em 1998 e foi o primeiro país onde eu vim, quando saí do Brasil pela primeira vez. Logo depois dessa vinda cá, eu fui parar na Bahia e me lembro que, no sul da Bahia, num lugar bem especial chamado Cumuruxatiba, onde tem uma reserva indígena linda dos índios Pataxós, alguns deles me diziam que foi ali que Cabral chegou. Naquele trecho ali, entre Ilhéus e Cumuruxatiba… Então, eu fiquei fazendo essa relação: uma distância tão grande… aquele lugar, a gente e vocês ainda continuamos parecidos. Não perdemos as características. Não perde- mos a semelhança, não perdemos a irmandade. Em alguns lugares, você chega para tocar e você corre aquele risco. Mas aqui é sempre uma sensação forte. Mais forte, como essa, só na emigração. Eu sempre destaco isso. A emigração de Portugal sempre foi muito gentil comigo e com a minha banda, quando tocamos para eles.
Essa irmandade de que fala, entre portugueses e brasileiros, poderia ser mais forte?
Penso que sim. Mas Portugal sempre foi um País muito discreto, dentro da comunidade mundial e dentro da proposta geopolítica. Foi "o país" da geopolítica. Isso foi há muito tempo, mas hoje, Portugal está bem. Já recebeu 25 prémios de qualidade e, é possível, que este ano, pela terceira vez consecutiva, seja eleito como o destino da Europa. Tenho acompanha- do muito esse processo de vocês, desde 2008, quando começou a crise e a austeridade que foi muito forte. Foi mesmo… foi mesmo quase as mesmas coisas que nós, no Brasil, estamos atravessando. Os mesmos desafios, com algumas diferenças, é certo. O Brasil é um país enorme com 200 milhões de pessoas e uma fatia de 13 milhões de brasileiros desempregados. Portugal, com menor tamanho, conseguiu resolver isso. Mas também conseguiu porque as políticas foram efectivas e é isso que a gente está esperando agora no Brasil. Queremos acompanhar esse momento que o "irmão mais velho" conseguiu superar.
Estrela da música e do cinema
Seu Jorge, nome artístico de Jorge Mário da Silva, nasceu a 8 de Junho de 1970, em Belford Roxo, Rio de Janeiro, no Brasil. É actor, cantor, compositor e multi-instrumentista de MPB, R&B, samba e soul. Começou a trabalhar com dez anos de idade numa borracharia, tendo sido contínuo, marceneiro e descascador de batatas num bar, antes de passar pelo Exército Brasileiro entre 1989-1990. Desde adolescente, frequentava as rodas cariocas de samba, acompanhando o pai e os irmãos em bailes funks, até se profissionalizar como músico. Mas a vida de Jorge foi plena de provações, chegando a ser sem-abrigo, até que foi convidado a participar no espectáculo A saga da farinha. Impressionou e acabou por entrar em mais de 20 outros espectáculos com a Companhia de Teatro TUERJ. O primeiro passo para ser conhecido como estrela do cinema internacional aconteceu com a personagem Mané Galinha, em A Cidade de Deus, o filme de Fernando Meirelles, premiado nos Óscares de 2004, mas foi como Pelé dos Santos, em The Life Aquatic, do realizador Wes Anderson que a sua popularidade explodiu. É o interprete de sucessos como É isso aí, Burguesia, Amiga da minha Mulher, Carolina ou Zé do Caroço – que diz ser uma das sua favoritas, por encarnar as dificuldades do povo brasileiro.
No mundo de hoje, um músico famoso, como Seu Jorge, pode dar-se ao luxo de ter uma opinião política e demonstrá-lo publicamente?
Sempre chove críticas, quando nós temos uma opinião sobre a política. A gente sempre… A gente vive numa sociedade e o fundamental é ser participativo. Me preocupo com o meu país e me preocupo, sobretudo, com o povo brasileiro, que dá o sangue todos os dias pelo Brasil, em troca de um salário muito, muito, muito baixo, trabalhando em condições muito ruins. Até posso entender que o mercado tenha um papel significativo no desenvolvimento de um país, da economia e tudo o mais, mas um país como o Brasil, com o tamanho, com a complexidade que tem, com a quantidade de pessoas que tem e com a crise que está instaurada, na conjuntura de hoje, eu acredito que a redução do Estado pode ser um ponto complicador, no que diz res- peito às políticas sociais e nos avanços conquistados nessas áreas e que podem, simplesmente, desaparecer.
Perante aquilo que lhes pareceu uma ausência de alternativas, os brasileiros colocaram muita fé no presidente Bolsonaro…
Quem votou nele, sim. Quem votou nele… Admito que, realmente, não tenho acompanhado a todos os níveis e todos os dias os eventos da Presidência, mas… É muito difícil fazer uma análise ou prospectiva de quando sairemos dessa situação. É necessária uma série de políticas, medidas, leis e, sobretudo, a gente precisa também de estruturar as instituições. Nos últimos tempos, elas têm sofrido muitos abalos sistemáticos e isso não pode acontecer, porque desestabiliza o Estado Democrático de Direito, que é uma conquista muito importante para todos nós. No meio da década de 80, em 1988, a gente conseguiu o feito de alcançar a democracia. Desde então, as gerações que nasceram no Brasil, conheceram um país que tem um Estado Democrático de Direito. Então, a maior preocupação agora é que não se desmantele o Brasil, que a gente não perca os avanços sociais que conquistámos e que a gente proteja a democracia.
Protagonizou já este ano um filme sobre Carlos Marighella, realizado por Wagner Moura. Como foi a experiência de encarnar essa figura de resistência?
O Carlos Marighella era um poeta bahiano, comunista, engenheiro, deputado, guerrilheiro, que foi um homem extremamente importante na história do Brasil, na luta contra a ditadura militar que começou em 1964 e durou até 1985…
Foi mesmo uma "ditadura"? Ao contrário do que muitos agora dizem no Brasil, não tem dúvidas sobre isso?
Foi mesmo uma ditadura! O Marighella combateu essa ditadura e a violência que acontecia. Ele acabou caindo em Novembro de 1969. Eu nasci alguns meses após a morte dele e cresci num Brasil mais ditador, mas tive o privilégio de ver isso mudar e a gente adquirir o direito de voto. [LER_MAIS] Batemos muito com a cabeça até aqui e, na minha análise, os oito anos do Governo de Lula foram importantes, foram anos de avanços, de crescimento e de desenvolvimento. Depois, o Brasil sofreu um golpe e, enfim, estamos agora num outro momento com o presidente Jair Messias Bolsonaro, que foi eleito democraticamente, pelo voto popular e está com sete meses de Governo… Um Governo cujas medidas eu, realmente, não aprovo, mas ainda reconheço que é cedo para falar porque ainda há muita coisa para acontecer…
Denoto tristeza na sua voz.
É…
Falando da sua música, como está trabalho no novo álbum? Vai sair com o nome The Other Side.
Sim, irá. Acredito que em, Outubro, ele esteja publicado. Estou muito feliz com esse álbum, acho que é uma alegria poder fazer um disco de intérpretes, com músicas que eu gosto, com autores que admiro. Tenho a colaboração de grandes músicos – esses meninos que tocam comigo no palco -, tenho a participação imprescindível do Miguel AtwoonFerguson, que fez os arranjos e cordas… Tenho a participação também da Marisa Monte, da Maria Rita… Estou muito feliz com esse álbum.
Dizem que é famoso no mundo do tricot e do crochet. Tem até a Novelo de Anjo, uma página de Instagram dedicada a todos os amantes dessa arte, onde diz: "tricotando música, arte, ideias. Deixa eu tricotar".
Eu adoro fazer tricot. Faço desde os 13 anos de idade. Uma tia minha me ensinou, quando eu era garoto e esta- va sem grande dinheiro, estava desempregado e não estava fazendo nada. Aí, eu percebi ela fazendo gravatas, blusas e tal… E eu comecei fazendo gravatas, cachecóis e gorros, enquanto estudava à noite, fazendo o Supletivo. Aí, eu vendia e me dei bem. Foi um sucesso de vendas? Vendi muito. Foi um ano, um ano e pouco disso. Depois, eu esqueci completamente que sabia fazer. Até que, uma vez, eu estava em Cascais, numas férias com a minha mulher, e entrei num armarinho chinês [loja chinesa] e passei na secção de linhas e agulhas. Estava lá um monte delas e eu pensei assim: "aí legal, vou fazer um tricôzinho!" A minha mulher não viu e não percebeu que eu peguei as agulhas e linhas e botei no cesto. Quando chegámos no caixa, para pagar, ela olhou as agulhas e as linhas e perguntou: "mas o que é isso? O que você vai fazer com tudo isso?" Ela achou que eu ia dar para alguém; para a minha mãe, para a minha tia. "Não. Vou fazer um tricot". Ela olhou na minha cara… "Ah! Isso é sacanagem! Você? Fazendo tricot?" Depois passou e ela esqueceu. Chegámos em casa, ela foi tomar banho e eu comecei. Desenrolei a minha linha, peguei uma receita na internet e comecei a fazer um cachecolzinho. Aí ela voltou e foi: "O que você está fazendo, cara?" Estou fazendo tri- cot, respondi. Quando ela viu, eu estava com um pedaço desse tamanho assim. Ela não queria acreditar e falou: "amor, você sabe fazer isso?". E eu falei: "sei. Sei fazer crochet também!" (gargalhada).