Vítor Francisco, 22 anos, trabalha e estuda desde o 1.º ano da universidade. Mas admite só ser possível porque está na Holanda. O jovem de Leiria reconhece que as condições laborais e de estudo nos Países Baixos são bem diferentes das existentes em Portugal.
“O modelo da Universidade de Maastricht é baseado no ‘Problem- Based Learning’. Tenho longas palestras e não tenho praticamente aulas expositivas. A carga horária é de cerca de 14 a 16 horas semanais”, revela o estudante que está a terminar a licenciatura em Filosofia, com o objectivo de vir a ser professor.
Para o jovem, esta metodologia facilita estar “mais por dentro da matéria” e uma “flexibilidade do estudo”, o que permite trabalhar enquanto se estuda. Um estudo da Eurostat, publicado há cerca de duas semanas, indica que Portugal está entre os países onde menos alunos estudam e trabalham ao mesmo tempo.
Em alguns países, os jovens começam a trabalhar num regime de part-time ou ao fim-desemana, enquanto estão a estudar, sobretudo na universidade. Para tal, os sistemas de ensino nacionais de educação proporcionam condições para que seja possível ao jovem fazer as duas coisas em simultâneo sem prejudicar a entidade empregadora nem o seu percurso académico.
Além dos programas curriculares estarem adaptados a esta realidade, o próprio mercado de trabalho tem características que permitem um contacto mais cedo com o mundo laboral, facilitando a sua transição.
Vítor Francisco concorda, ao referir que na Holanda também se assiste a uma “maior flexibilidade” no trabalho e as entidades empregadoras “têm consciência de que estão a contratar um estudante e não alguém que está a tempo inteiro”. O aluno revela ainda que o próprio Governo incentiva os jovens a trabalhar enquanto estudam.
“Por exemplo, quem trabalhar 56 horas por mês tem direito a um financiamento. Posso ter mais 1.300 euros por mês, além do valor do meu ordenado”, afirma, lamentando que em Portugal possivelmente ainda teria de pagar impostos por um eventual part-time.
Os dados divulgados pelo Eurostat revelam que, no ano passado, 86,9% dos jovens estudantes portugueses, dos 15 aos 29 anos, não trabalhava, sendo que outros 10,3% estavam empregados e 2,9% desempregados.
1.300 euros por mês, além do valor do meu ordenado”
Portugal era, em 2021, o décimo país da União Europeia (UE) com mais jovens estudantes naquela faixa etária fora do mercado de trabalho, acima da média comunitária de 73,4%. Com percentagens mais altas do que Portugal estavam a Roménia (97,4%), Eslováquia (95,4%), Bulgária (94,2%), Hungria (94%), Croácia (92,5%), Itália (92%), Grécia (91,8%), República Checa (91,2%) e a Polónia (87,1%). Entre os Estados-Membros da UE, os Países Baixos tinham a maior percentagem de estudantes que estavam empregados enquanto ainda estudavam em 2021 (70%), seguidos pela Dinamarca (49%) e Alemanha (42%).
Dificuldade em conciliar
Maria Pereira vai iniciar o terceiro ano de um curso de saúde em Portugal. A estudante de Leiria aponta a carga pesada do currículo e o horário de aulas, assim como a falta de flexibilidade das entidades empregadoras, como factores que a impedem de trabalhar e estudar ao mesmo tempo.
“Gostaria de poder fazer um part- -time, mas não me é possível conjugar as horas de aulas, muitas vezes quase o dia inteiro, mais os trabalhos autónomos e o estudo. Tenho a certeza de que os estudantes trabalhariam mais se o horário escolar fosse reduzido. Assim, não nos sobra tempo para quase nada”, adianta a estudante de 21 anos.
A jovem acrescenta que “em Portugal não há também uma mentalidade da parte empregadora para contratar jovens apenas por umas horas”. “Se houvesse uma maior rotatividade de contratação para part-time, aliado a um horário escolar reduzido, tenho a certeza que haveria uma maior percentagem de trabalhadores- estudantes. Muitos aproveitam o Verão para trabalhar, portanto, não é por falta de vontade”, salienta.
Paula Faria, docente e investigadora do Politécnico de Leiria, já esteve em várias universidades estrangeiras, e constata que em Portugal os horários das aulas não tendem a ser compatíveis com um trabalho e as entidades empregadoras poderiam beneficiar mais com contratação de quem está a estudar.
“Mesmo que existam manhãs ou tardes livres, raramente o horário dos alunos é semelhante em termos de mancha horária diária ao longo da semana e dos semestres e as empresas também não têm um regime fácil de contratação deste tipo de trabalho. É de lamentar não ser possível esta ligação imediata, porque daria mais maturidade ao aluno e facilitaria a transição para o mercado de trabalho”, explica Paula Faria.
A professora revela mesmo o caso de um aluno que omitiu que estava a estudar para não ser penalizado pela entidade empregadora, o que se transformava em momentos de ansiedade quando tinha de faltar ao trabalho para realizar exames.
Paula Faria reforça que se as ligações entre universidades e empresas estivessem mais enraizadas em Portugal, os estudantes ganhariam mais maturidade e teriam mais oportunidades. “O facto de já estarem a trabalhar na sua área de estudo poder-lhes-ia abrir portas, ajudar na escolha do que querem realmente fazer e elevaria as competências dos nossos estudantes.”
Muitos estudantes-trabalhadores optam pelo regime nocturno, mas as dificuldades são muitas. As aulas iniciam- se, na maioria das vezes, pelas 18 horas, o que obriga o estudante a sair mais cedo do trabalho se não quiser faltar à aulas. A carga curricular também é elevada para quem já cumpriu seis ou sete horas de trabalho.
O Politécnico de Leiria tinha 1.199 alunos, no ano 2021/2022, com o estatuto de trabalhador-estudante, um número que aumentou face ao ano lectivo anterior, sendo que a maioria frequenta licenciaturas. O “Regulamento dos Estatutos Especiais Aplicáveis aos Estudantes do Instituto Politécnico de Leiria” prevê que o “trabalhador-estudante não está sujeito à frequência de um número mínimo de unidades curriculares”.
“De igual forma, não está sujeito a qualquer disposição legal que faça depender o aproveitamento escolar de frequência de um número mínimo de aulas por unidade curricular”, explica o documento. O regulamento dá ainda “prioridade nos processos de atribuição de locais para realização das unidades curriculares de estágio, de educação clínica, de ensino clínico e de práticas pedagógicas” e garante que o aluno “não está sujeito à limitação do número de exames a realizar em época de recurso e tem direito a poder submeter-se à avaliação na época especial até ao limite de 30 ECTS”.
Apesar destas ‘facilidades’, a verdade é que os alunos que trabalham e estudam ao mesmo tempo enfrentam maiores desafios do que os colegas que não trabalham. Faltar às aulas implica, muitas vezes, maior esforço no estudo e ao não fazerem, por opção, todas as unidades curriculares num ano, obriga-os a fazer o curso em mais anos.
Despedimento
Susana (nome fictício) vai para o quarto e último ano de um curso de saúde no Politécnico de Leiria. Este ano foi obrigada a despedir-se, depois de quase entrar em colapso. “Era quase impossível trabalhar e estudar. O primeiro ano foi horrível. Tinha 11 cadeiras em cada semestre. Depois com os estágios piorou. No ano passado (3.º do curso), o último estágio foi muito difícil. Tive de pedir baixa, porque não estava a aguentar. Não tinha vida pessoal ou social. Passei a trabalhar ao fim-de-semana para ter a semana para o estágio, mas ainda tinha de elaborar o relatório, fazer trabalhos de investigação entre outros”, revela.
A estudante, de 24 anos, que prefere não se identificar para não sofrer represálias, lamenta que haja “alguns docentes que não tenham qualquer compreensão para quem trabalha e estuda”. “Tive orientadoras excelentes e alguns professores também, mas há outros que não têm qualquer sensibilidade e até ignoram as críticas construtivas que fazemos nos inquéritos de avaliação no final do semestre. Vêem-nos como miúdas e para quem está a ensinar futuros técnicos de saúde deveriam ter outra atitude.”
“Quando somos empregadores, valorizamos muito a experiência e preferimos contratar alguém com experiência do que alguém que tem 16 ou 17 valores e nunca trabalhou na vida”, afirma Vítor Hugo Ferreira, director-geral da Startup Leiria e docente no Politécnico de Leiria, aconselhando os estudantes a terem “experiências de part-time ou pro-bono”, porque lhes vai dar “capacidade de trabalhar em equipa e de lidar com situações de pressão, que normalmente não têm no meio académico”.
Uma das razões que impede os estudantes de trabalhar em simultâneo é “cultural/educacional”. “Temos uma geração que nos últimos 20 anos conseguiu enviar os filhos para a universidade. Hoje cerca de 45 a 55% dos jovens do 18 aos 25 anos vão para o ensino superior, o que é fantástico, e os pais defendem que eles devem priorizar os estudos”, afirma, ao apontar ainda a falta de pro-actividade, no geral, aos alunos portugueses.
Vitor Hugo Ferreira acrescenta que nas competições de empreendedorismo são, muitas vezes, os docentes a “empurrar” os alunos para participarem. “Do ponto de vista académico até tiveram de fazer um trabalho e não se dão ao trabalho de o customizar para concorrer”, afirma, ao reconhecer, contudo, que quando os portugueses estão noutro país, “acabam por fazer igual aos outros”.
Por outro lado, entende que a legislação portuguesa também não favorecerá muito o tipo de contratação de trabalhadores-estudantes, reconhecendo que também não há capacidade para dispensar um recurso humano para orientar um jovem durante um, dois ou três meses.
Vítor Hugo Ferreira defende, por isso, horários escolares mais compatíveis, mas também um sistema de créditos atribuídos pela instituição de ensino superior às experiências de trabalho, à semelhança do que sucede na Alemanha ou Inglaterra, onde os jovens são valorizados por experiências laborais internacionais pro-bono.