O seu nome já era bastante conhecido na música, especialmente, após ter vencido com o DJ Ride, por duas vezes, o Campeonato Mundial da International DJ Association. Porém, com o disco Bairro da Ponte, sente que saiu do mundo das pistas de dança e se tornou mais conhecido do público generalista?
É possível. O primeiro single saiu em 2018 e tudo apontava para que o disco saísse no final desse ano. Houve alguns atrasos com o licenciamento dos samples. Eram 19 músicas e todas elas tinham samples e autorizações que atrasaram o processo. Foi um trabalho que demorou muito a fazer. Eu já tinha uma carreira de alguns anos, como dj, já tinha feito produções sozinho e com outras pessoas. Já tinha uma carreira sólida. Já tinha os Beatbombers com o Ride… O Bairro da Ponte fez-me passar para produtor e compositor. Comecei a escrever letras para cantores. Queria dar concertos e tocar as minhas músicas e juntar a parte electrónica a uma banda. Isso deu-me fôlego. Qualquer artista precisa de combustível para a inspiração. Não é só estar sentado a olhar para um quadro da sua musa… Por vezes, precisas de uma guitarra nova para te estimular. Nunca havia escrito uma letra e comecei logo a escrever para cantores gigantes! Tive excesso de confiança, mas resultou. Convidei a Ana Moura para um tema e tinha de escrever uma letra com melodia para ela. Pensei, “vamos a isso!” Mas, assim que entrei no carro, a caminho de casa, comecei a pensar “mas no que é que eu me meti?!” O excesso de confiança pode ser bom porque te leva a coisas que não sabias que conseguirias fazer.
Como surgiu a ideia de samplar o fado da Amália e juntar-lhe artistas como Camané?
Era um plano antigo. A primeira vez que fiz algo assim, foi uns dez anos antes de o Bairro da Ponte sair, quando me lembrei de samplar o Verdes Anos. A primeira vez que o apresentei, foi num dj set com o Ride, em Lisboa, numa rave às quatro da manhã, antes de uma cena techno alemã. Lembrei-me, “deixa-me experimentar esta cena para quebrar um bocado a energia e servir como tira-gosto para os gajos do techno terem a pista aberta”. Tinha a ideia de que aquilo iria ser calminho. Para minha surpresa, quando acabei, estava tudo louco, a bater palmas. Foi um momento de “eureka!”. Passados dois anos, fiz o [LER_MAIS]Barco Negro, da Amália, e comecei a trabalhar com o Ricardo Gordo, em produções com guitarra portuguesa. Nesses dez anos, fui criando repertório e, um dia, fui à Valentim de Carvalho, para o mostrar. Tiveram uma reacção óptima. Uma das coisas que impulsionou o disco foi o facto de o Verdes Anos ter sido usado para banda sonora da Eurovisão 2018, em Lisboa. Desafiei-os a fazer um EP. Em quatro dias, sem dormir, enviei quatro temas novos a partir do Carlos Paredes. Gostaram e propuseram-me músicas da Amália. Abriu-se a caixa de Pandora. Aquilo que iria ser um EP instrumental, com cinco faixas, transformou-se num disco com 19 músicas e imensos cantores.
Disse, na altura que o Bairro da Ponte era só o início de algo mais sério. Em 2021, lançou um novo disco com Manel Cruz, João Pedro Pais, Selma Uamusse, entre outros.
Tive outro tipo de cantores, mas o fado e a portugalidade continuam a ser o meu carimbo e procura de identidade. Não preciso de ter um fadista, para ter fado num instrumental. Não preciso de um sample de fado ou de uma guitarra portuguesa para ter fado. Sempre me preocupei com a originalidade e ter uma personalidade única…. Quando peguei no Verdes Anos, fi-lo porque gosto de hip-hop e nesse estilo que vem dos EUA, o que é natural é samplar discos de funk, blues ou jazz, que era o que os produtores, em jovens, tinham em casa, comprados pelos pais. Um jovem americano que, nos anos 80, começava a samplar ia à colecção de discos do pai. Eu fiz isso com os discos dos meus pais e avós, que são de fado e de música africana. No disco seguinte, Desghosts & Arrayolos, porque não queria fazer um Bairro da Ponte 2.0, mas pretendia continuar a direcção conceptual da portugalidade, uma das coisas que considerei desde o início foi não usar samples de outros. Por isso, tive de aprender a tocar instrumentos e fazer os meus samples. Não queria estar preso só ao fado, porque não somos só fado, Fátima e futebol. Portugal não é só essas três coisas. Dirigi-me para algo que estava muito longe da minha zona de conforto: a música pop, mais “happy” e comercial. Cheguei à conclusão de que teria de compor e gravar dois discos. Um mais na minha linha e outro mais pop, para ter a dualidade da canção de amor que, ou é um desgosto, ou é uma paixão nova. As canções de amor são sempre isto. É um cliché, mas é um tema universal e, todos os anos, haverá mais novas músicas sobre o tema. A alegria e o desgosto de amor fazem parte da condição humana. Desghosts é sobre os desgostos e os Arraiais são uma coisa mais pop e de festa. Ghosts tem que ver com o ghosting, as relações das redes sociais e do “saímos hoje e nunca mais oiço falar de ti”. O YOLO é o ”You Only Live Once”, da festa como se não houvesse amanhã.
Na segunda-feira, saiu mais um trabalho, uma colaboração com Cabrita com selo da Omnichord Records, de Leiria.
É uma espécie de banda sonora para uma curta, onde eu e ele somos protagonistas. É uma coisa à Homens da Segurança e Duarte e Cia., com bigodes e pancada. O Cabrita vem do funk e do jazz e, em 2021, desafiou-me para fazermos um tema. Num fim-de-semana, enviei-lhe dez músicas e ele gostou de cinco ou seis e começámos a trabalhar num EP, que se tornou num disco com oito faixas. Aproveitei para explorar a guitarra eléctrica, num registo mais funk. Surgiu-me a ideia de criarmos a banda sonora para um filme na onda da Blaxploitation, mas à portuguesa, como o Zé Gato. Isso permitiu ter músicas mais aceleradas, ou mais ambientais e contemplativas. A história é sobre dois detectives privados, que agem à margem da lei e tentam fazer o bem. O realizador foi o Ricardo Coelho Ferreira. O vídeo do primeiro single é o trailer do filme. Juntámos a equipa técnica e a banda com que vamos apresentar o projecto ao vivo, para serem os personagens do filme, e fomos filmar para a Caparica e para Lisboa com uma handycam velhinha.
Ao estilo Sabotage, dos Bestie Boys?
Muito por aí. Há muitas armas, muita porrada, muitas referências com que eu e o Cabrita nos identificamos. Gostamos da arte mais fina do cinema, mas também de filmes classe B ou C. Na onda do Tarantino.
O que acha de capitais europeias da cultura num País onde o Orçamento do Estado para a cultura é tão curto?
É sempre bom. Se a Capital Europeia da Cultura não acontecer, ficamos com pouco mais do que nada. Não conheço muito da cultura de Leiria, mas para as Caldas, que concorre em rede com Leiria, faz todo o sentido. Há a tradição da ESAD que dinamizou muito o sector, nos últimos 25 anos, pelo menos. Já tínhamos a tradição dos ceramistas, dos escultores… sempre foi uma cidade com uma componente artística bastante vincada. Veja-se o Bordalo, desde o final do século XIX…
O que guarda do tempo que passou na ESAD?
Fiz os cursos de Artes Plásticas e Design Industrial, que eram o meu plano B, caso a música não desse. Para se ser artista, é preciso ter um “emprego a sério”, para pagar os hobbies. Nesse tempo, já trabalhava num gabinete de desenho de arquitectura, para pagar o curso. Sempre pensei que o Desenho era o meu ponto forte e, por isso, fui para Artes Plásticas. Rapidamente, vi que todos os meus colegas desenhavam melhor do que eu e as artes plásticas não seriam a minha cena. Mudei para Design Industrial, porque já trabalhava na área e quis ter mais-valias nesse campo.
Ter um “emprego sério” é a sina do artista?
Em Portugal e, provavelmente no Mundo todo. Ou se trabalha e é-se artista à noite, ou vens de uma famí- lia com algumas posses e podes dedicar-te às artes sem pensar que tens de pagar a renda. Esse período na ESAD foi importante pelo “sangue novo”, pelas ideias e pessoas novas que conheci. Adquiri conhecimentos sobre desenvolvimento de conceitos e uso-os todos os dias na música. Para uma terra é muito importante que chegue gente com sangue novo e ideias novas. Foi nas festas da ESAD que comecei a tocar como dj e a desenvolver toda a cena da música. Se não fosse a ESAD, estaria a trabalhar num escritório.
Como foi que se lembraram de competir no Campeonato Mundial da International DJ Association, que vos valeu os prémios de melhores dj do Mundo?
|Começámos a fazer scratch nos inícios da internet e não havia, praticamente, informação sobre isso. Não passava na televisão, não havia cursos como há agora, não havia tutoriais do Youtube. O que havia era os campeonatos de scratch e, volta e meia, lá se conseguia arranjar uma cassete VHS, com um campeonato. O Ride, que era muito nerd, andava nos canais de mIRC e no Soulseek à procura desses conteúdos. Nós víamos o que se fazia e aprendíamos. Ficava sempre o bichinho. “Gostava de experimentar isto”. Ouvíamos e depois tentávamos emular os sons para perceber como aquilo acontecia. Antes de ver num vídeo que se podia pôr autocolantes num disco para obrigar a agulha a começar num determinado sítio, já tinha percebido que isso era possível. Com o tempo, percebemos que tínhamos aptidão suficiente. O Ride já tinha estado no mundial na Polónia e dizia que conseguíamos ir e fazer alguma coisa decente. Em último, não ficaríamos, de certeza, dizia ele. Fomos ao DMC em Londres com a nossa rotina de seis minutos e ficámos em quarto lugar. Correu tão bem que achávamos que merecíamos o segundo posto. Os gajos que ficaram nesse lugar vieram ter connosco, para nos dizer que não sabiam como tinha ficado à nossa frente. Essa participação deu-nos muito alento. A seguir, ia haver um campeonato na Polónia. Entrámos em contacto e, por termos ficado em quarto, perguntá- mos se podíamos participar como wild card. Disseram que sim, se pagássemos a viagem. E fomos. Ficámos em segundo e foi taco-a-taco. Sentimos que não ganhámos porque não calhou. Voltámos a Portugal, discutimos novas ideias e, no ano seguinte, ganhámos. Depois disso, ficámos em terceiro, a seguir em segundo e, por fim, voltámos a ganhar. Queríamos vencer duas vezes para que não houvesse aquela conversa de que “foi por sorte”. Não! Ganhámos duas vezes e é indiscutível. A sorte dá muito trabalho. Ficámos no pódio cinco vezes e só se fala das vezes que vencemos. O trabalho que tivemos para ficar em segundo, que também é um mérito do caraças, foi igual ao que tivemos para o primeiro lugar.
Arranhar discos no gira-discos da avó
Tiago Norte, nascido em 1978, nas Caldas da Rainha, cidade onde ainda vive, dá corpo e vida a Stereossauro. É produtor, autor e compositor e responsável por Bairro da Ponte, um dos discos mais bem classificados pelos críticos e pelo público em 2019.
Conta que, durante muito tempo, embora já tivesse contacto com a música, através de bandas de garagem e instrumentos emprestados, acreditou que o futuro estava nas artes plásticas.
“Só após começar a trabalhar, quando comecei a ganhar o meu próprio dinheiro é que comprei um computador e comecei a fazer as primeiras brincadeiras com samples.”
Autodidacta, na adolescência, as preferências iam para o punk hardcore e rap, influenciado pela prática de skate, desporto que haveria de lhe valer um braço partido. “A ligação mais forte era com o rap e hip-hop e, quando comprei o computador, percebi que aquela música se fazia com samples de outros discos.”
A partir daí começou a arranhar discos no gira-discos da avó e a estudar a fundo essa arte.
Anos depois, em parceria com outro caldense famoso Oliveiros Tomás Oliveira – o DJ Ride – amigo de longa data, formou a dupla Beatbombers com a qual atingiram, por duas vezes, o primeiro lugar no Campeonato Mundial da International DJ Association.