Os ensaios têm decorrido na cidade do Lis, orientados pelo humorista e encenador original, Cláudio Torres Gonzaga.
Ao fim de um ano a viver juntos, Zeca e Fernanda vão celebrar a primeira noite do Dia dos Namorados, desde que tomaram a resolução de partilhar um tecto. Fernanda reservou uma mesa num restaurante caro e está entusiasmada com a situação.
No entanto, um pequeno acidente enquanto se vestem para a noite especial, acaba por deixar o casal fechado na casa-de-banho. Primeiro, tentam forçar a saída, depois, perante a impassividade da porta face às tentativas de arrombamento, resolvem chamar a atenção de quem os possa tirar dali. Por fim, resignam-se a passar a noite dos Namorados fechados. À medida que as horas passam, perdem-se em memórias, partilhas, ciúmes, amor e em revelações.
Este é o ponto de partida da comédia romântica Enfim. Nós, que vai ter estreia nacional no Teatro Miguel Franco, em Leiria, nos dias 8 e 9. Nos papéis principais, estarão a actriz de Leiria, Marta Fernandes, conhecida da televisão e teatro e que adaptou o texto original, e o actor e produtor madeirense Rúben Silva.
A encenação é do autor, encenador e humorista brasileiro Cláudio Torres Gonzaga que, desde há um mês está em Portugal para, com a sua batuta paciente, ajudar à adaptação da sua peça.
O trio tem trabalhado em Leiria, no M Studio, a escola de teatro da actriz. No Brasil, Enfim. Nós está em cena há mais de dez anos e já passou a marca dos 600 mil espectadores, tendo sido interpretada pelos actores Bruno Mazzeo, Fernanda Souza, Fabíula Nascimento Regiane Alves, Marcius Melheme, Fernanda Rodrigues, Maria Clara Gueiros e Ricardo Tozzi, muitos deles conhecids em Portugal, através de papéis, no cinema ou televisão.
A receptividade do público brasileiro tem sido boa, como demonstram os índices de popularidade publicados por alguns dos principais jornais do país.
Adaptações “cabeludas”
Esta é uma peça que fala de relacionamentos e acaba por levar o público, aquele está na mesma faixa etária das personagens e já viveu algumas das situações representadas, e aquele que ainda as irá viver, a identificar-se com os protagonistas. O encenador sublinha que o texto mistura bem a comédia com uma reflexão sobre os relacionamentos, o casamento e os afectos.
"É isso que faz com que a peça se mantenha em cena há tantos anos", entende. E onde foram Cláudio Torres Gonzaga e Bruno Mazzeo, os autores do guião, buscar a inspiração para esmiuçar as possíveis situações que se deparam aos casais, quando ficam fechados no "banheiro"? A si mesmos, é a resposta.
"Primeiro, começámos pelo mais óbvio. As tentativas de tentar abrir a porta, de procurar uma saída alternativa, a comunicação de um para o outro… Eu e o Bruno somos de gerações bem diferentes, então, cada um trouxe um pouco da sua experiência em relacionamentos: eu que sou casado há mais tempo e ele que, na época em que escrevemos, estava namorando. Juntámos os dois olhares; o do casal mais jovem e o do casal mais experiente."
Para a versão portuguesa, coube a Marta Fernandes fazer o grosso da transposição cultural do texto e vertê-lo em Português de Portugal. Depois, a versão final foi sendo limada com o auxílio de Cláudio e Rúben.
"A maior parte das situações foram despejadas directamente, mas tive de fazer alguns arranjos ao nível da organização frásica e alguns termos", recorda a actriz. A tarefa tem sido demorada e alvo de algum debate, especialmente, em algumas situações mais “cabeludas”.
A tarefa mais fácil, foi mudar a data do Dia dos Namorados. Em terras de Vera Cruz, é celebrado a 12 de Junho, mas, em Portugal, é a 14 de Fevereiro. O trabalho mais complexo foi o de alterar algum do léxico, pois há expressões em Português do Brasil que não encaixam em Portugal por não terem a mesma força dramática, ou terem sequer um correspondente deste lado do Atlântico, explicam.
Marta Fernandes recorda uma discussão recente sobre uma expressão idiomática brasileira muito forte e para a qual não há no nosso País uma expressão correspondente. "Optámos por usar a palavra 'furiosa'", diz com algum pudor. Sem papas na língua, Cláudio Torres Gonzaga revela a frase original: "eu estava puta".
"Ficar pior do que estragada", "irada" ou até "furiosa" são sinónimos, na versão do idioma do lado de cá do Atlântico, aos quais falta alguma da força que só o vernáculo pode conceder. "Não quisemos utilizar a palavra original, embora acredite que a maioria do público português [LER_MAIS] saberia o que significava neste contexto.
Em Português de Portugal tem outro sentido e é muito agressiva, ao contrário do que acontece no Brasil, que é muito mais comum e de uso no dia-a-dia", diz a actriz. E houve outras situações. "Tivemos também problemas em conseguir uma palavra para ‘impotente’. Precisávamos de um verbo. No Brasil, é 'brochar'. Em Portugal, não há e não se pode usar a palavra brasileira", ilustra o encenador. "Ficou 'fui-me abaixo', embora não seja um verbo", adianta Rúben Silva.
Mais uma vez, falta, na versão portuguesa, a força que só uma expressão vernacular lhe poderia dar.
Há também comentários humorísticos sobre celebridades brasileiras, que, na versão que será apresentada em Leiria, têm como alvo as socialites lusas. "Quando li a primeira versão da Marta, achei tudo muito engraçado. Quando se vai ao detalhe, percebe-se que houve muita coisa mexida, embora não seja logo visível", afirma o autor da peça.
Nos últimos dias, ainda em trabalho de ensaio, atrás das portas fechadas do M Studio, no edifício da Associação Columbófila de Leiria, o trio tem descoberto mais algumas situações que precisam de ser afinadas, mas está quase tudo pronto para a prova de fogo da próxima quarta-feira, perante o público da cidade do Lis.
“O Cláudio confiou muito no nosso trabalho e deu-nos uma liberdade de criação incrível. É um verdadeiro maestro que nos deixa explorar e dá orientações nalguns momentos fulcrais para que a acção se mantenha num bom nível", dizem os actores.
Equilibrar energias
Em palco, dizem Marta e Rúben, para fazer um papel romântico, é preciso "equilibrar energias", mas que a tarefa estava facilitada, à partida, pela longa amizade e pelo profissionalismo de ambos.
"É um trabalho que se vai construindo, pouco a pouco", diz Marta. "Acima de tudo, construímos uma personagem em cima do texto e tentamos perceber até que ponto podemos explorar cada momento e encontrar uma identidade", conclui Rúben. O convívio diário nas últimas semanas, vivido a três, resultou naquilo que o encenador considera uma "imersão de convivência".
"Estamos morando e trabalhando juntos há um mês. Quando a gente sai do palco e vai para casa, o trabalho continua. Isso, com certeza, vai estar em cena", enfatiza. O casal Zeca e Fernanda não é tão transparente como, a princípio, somos levados a pensar. Ambos escondem, um do outro, um segredo.
"Eu e o Bruno Mazzeo achámos que era o ideal para, a meio da peça, dar uma virada em tudo", diz o encenador. Mas o final “é feliz”. Está garantido pelos actores e encenador.
Em Lisboa, no Dia dos Namorados
Marta Fernandes e Rúben Silva procuravam um texto que lhes permitisse partilhar um palco num trabalho comum. Encontraram Enfim, Nós, no Youtube e na imprensa online brasileira.
O tom de comédia e a inteligência do texto agradou-lhes desde o primeiro segundo. O passo seguinte foi contactar o autor e encenador Cláudio Torres Gonzaga, que além de encenador é o líder da trupe Comédia em Pé, um espectáculo de stand up no Rio de Janeiro e redactor na Rede Globo.
"A Marta fez um contacto por Facebook e houve logo uma empatia muito rápida. Claro que fiquei com algumas dúvidas naquele momento e fiquei um pouco incrédulo, mas logo, no primeiro telefonema, senti uma tranquilidade total e senti que ia dar certo", conta o autor.
Após as primeiras mensagens através da rede social, Cláudio procurou o trabalho da actriz no Youtube. Do lado de cá do oceano, Marta e Rúben fizeram o mesmo. O resultado foi uma co-produção entre a brasileira Caravana Produções e a CulturProject.
Cláudio aproveitou a oportunidade de ser um dos convidados do Festival Avesso, na Ponta do Sol, na Madeira, para viajar até Leiria e encenar a versão lusitana de Enfim, Nós. Após a sua partida para o Rio, caberá a Rúben, que também é produtor, assegurar a continuidade do espectáculo nos palcos nacionais.
"Queremos levá-lo a vários pontos do País e a diferentes festivais… e quem sabe? Um dia iremos levar a nossa versão ao Brasil", diz Rúben. Após Leiria, a peça vai estar em palco no dia 14 de Fevereiro, em Lisboa, no… Dia dos Namorados, naturalmente.
Em Março, há a possibilidade de ir em digressão regional para a Madeira. Depois, irá percorrer o circuito dos festivais de teatro nacionais.