O Te-Ato, grupo a que, em Leiria, o público se foi habituando a dizer que era “o do João Lázaro”, por oposição ao outro, “o do Pedro Oliveira [O Nariz]”, formou actores, na sua escola, produziu espectáculos e, ultimamente, também se começou a dedicar à programação.
Ao fim de quatro décadas, o director artístico João Lázaro (em cima, à esquerda) vai dar um passo ao lado e dar espaço a novas caras, com destaque para Miguel Sarreira, mas não abandona o teatro. Isso, a brincar, só vai acontecer “no dia em que fizer 90 anos”.
Lázaro, psicólogo clínico, diz que é minimalista, Sarreira que é designer, é mais esteta. "Esperem, andei 40 anos enganado. Há dias, disseram-me que não sou minimalista. Afinal, sou é clean!", esclarece o primeiro. O grupo é, actualmente, a mais antiga estrutura teatral de Leiria e uma das mais antigas do País e não está nos planos uma transição de cargos, mas uma convivência entre ambos.
Sublinham, para que fique claro, que o director artístico continuará a ser o principal responsável pelo projecto. Miguel, hoje com 46 anos, foi para o teatro porque estava farto de trabalhar das 9 às 18 horas e precisava de um escape. Entrou no Te-Ato há 14 anos. No primeiro dia, conheceu João, que lhe deu um papel com texto para decorar.
"Levei muito tempo a perder o nervoso, que não era miudinho, mas grosso." Um dia, percebeu que se sentia bem no palco e que pertencia à casa.
A dupla já tem ideias e novidades alinhavadas. A estética e as linhas que sempre balizaram a actuação do colectivo vão ditar os próximos tempos. "Quero fazer evoluir os conceitos que tenho aprendido com o João e continuar a abordar coisas que, normalmente, se evita falar às crianças. A morte, a tristeza, os conflitos."
Mas nem só de artes clássicas de palco se vai fazer o trabalho. Como uma das vertentes do colectivo é a programação, o Te-Ato quer ter uma palavra na música. Uma das ideias é levar a Leiria propostas complexas que só se escutam nas escolas superiores de música e, em Novembro, vamos poder assistir a uma performance, dentro desse conceito, pela maestrina Sílvia T, na Igreja de São Pedro.
"Não é um evento para milhares de pessoas. Vamos ver o que sai daqui", explica Sarreira. Lázaro levanta um pouco mais o véu e explica que o trabalho futuro será também feito à volta dos autores clássicos e do Renascimento. Nos próximo ano vão levar ao palco a re-encenação da peça Já sou crescido, O Príncipe Constante, de Calderón de la Barca, e As Heróides, obra do poeta romano Ovídio, traduzida por Carlos André.
A próxima edição da mostra de curtas de teatro Sinopse – Festival de Teatro Actor João Moital vai trazer à cidade do Lis nomes grandes do teatro, e Leiria acolherá espectáculos underground de qualidade.
"A 2 de Dezembro, não percam As Cartas de Damasco, no Miguel Franco, com Sofia Paiva", diz João Lázaro, a talhe de foice. Outro dos espectáculos debaixo de olho da dupla para o próximo ano, “passa-se numa livraria e só pode ser feito numa livraria”.
Por fim, está apalavrada uma colaboração entre Lázaro e Pedro Oliveira, director artístico d'O Nariz, com texto de Luís Mourão.
O melhor espectáculo cabe na mala de um Renault 5
“Ao fim de 40 anos a fazer teatro, já não devemos nada a ninguém e podemos dizer e fazer o que nos dá na gana. É uma sensação muito libertadora”, diz Lázaro. E ao fim de quatro décadas, já saberão qual é o melhor espectáculo de teatro?
"Aquele que cabe na mala de um Renault 5", respondem Lázaro e Sarreira, em uníssono. Porquê? "Porque era o carro que eu tinha há muito tempo e que servia para as nossas [LER_MAIS] deslocações", responde o actual director artístico.
Lázaro sublinha que O homem da gravata de lã, a peça que considera um dos seus melhores espectáculos de sempre, responsável por uma digressão ao Brasil, tinha apenas um adereço. "Uma gravata de lã, pois claro!"
Poderia ter sido pior? “Poderia, admite.” Na peça C10H14N2, da autoria de Sandra José, o responsável pelo Te-Ato, fumava 16 cigarros de cada vez que encarnava a única personagem.
Os restantes quatro, devorava-os em baforadas, no final, para acalmar os nervos do palco. Há coisas que João Lázaro teria feito diferente nestes 40 anos? Muitas. Demasiadas. Histórias engraçadas? Não, apenas momentos interessantes. E erros? Apenas um. "Excesso de modéstia", responde de rajada.
Há dias, foi ver um espectáculo de teatro ao Mosteiro da Batalha com o mesmo conceito que o Te-Ato anda há décadas a aprimorar. "Utilizámo-lo na peça Gil Moniz e a Ponta do Nariz, nos anos 70 ou 80. Sempre aplicámos e desenvolvemos conceitos inovadores. Nesse espectáculo para a juventude, os jovens que estavam no público, faziam parte da peça."
Não esconde que foram as contingências e falta de recursos de algumas produções que levaram o colectivo a trilhar novos objectivos e caminhos estéticos, de crescimento e de organização.
Por um lado isso foi positivo e, por outro, negativo. Ainda hoje, o maior desgosto que sente é por não haver ainda uma sala condigna para o Te-Ato. Falar deste colectivo de Leiria é também falar de teatro para a infância – não confundir com teatro infantil.
Todos os anos há um novo espectáculo destinado aos mais novos, que também pode ser visto pelos adultos… e, muitas vezes, a Sala Jaime Salazar Sampaio, a casa do Te-Ato, enche-se apenas com “maiores de 18 anos”, ansiosos para ver peças de teatro para a infância.
Aconteceu, recentemente, com a peça O Rei dos Elfos, que fala sobre a morte, e Já sou crescido, que aborda a inveja e o ciúme que os progenitores têm do amor dos filhos. Nas peças para a infância, o grupo não esconde a se sexualidade, erotismo, amor, ódio e raiva. Não esperem finais felizes, nos trabalhos do Te-Ato.
"Pedagogia", porém, é um termo que os responsáveis do Te-Ato rejeitam quando se fala no trabalho para os mais novos. "Didáctico", soltamos como expressão alternativa. "Talvez", respondem. "Levantamos dúvidas e questões que eles, depois, levam aos pais."
“Estás lixado que te vou amputar todo”
Em 1977, numa época em que a revolução de Abril inspirava os portugueses nos ideais da liberdade, igualdade, democracia, justiça social e… cultura, o movimento associativo estava emergente e o teatro era uma das suas expressões mais visíveis.
Entre os mais de 120 grupos de teatro amador existentes no distrito de Leiria, uns interessavam-se por textos mais populares, outros por autores como Brecht ou Graß, mas todos partilhavam o nervoso miudinho de subir ao palco e representar vidas e transmitir ideias novas. Foi nesse cenário que apareceram nomes como João Lázaro e Andrzej Kowalski a fazer teatro.
Na aldeia das Cortes, a dois passos de Leiria, vivia Filipe Matias, que integrava o grupo de teatro do Orfeão de Leiria, encenado por Quiné. A determinado momento, o actor lançou o embrião de um grupo de teatro na localidade.
"Juntámos meia-dúzia de pessoas e começámos a trabalhar”, recorda Lázaro. No dia 30 de Dezembro de 1977, estrearam o Retábulo das Maravilhas, de Cervantes. Depois, o grupo assumiu a direcção do Centro Popular de Cultura e Recreio das Cortes e levou, em Janeiro, a peça ao Festival de Teatro Amador de Porto de Mós.
E foi aí que o Te-Ato se consolidou e Lázaro passou para a frente do colectivo. "Por causa de um disparate meu, fiz uma entrada em cena que não estava prevista pela plateia. Foi um sucesso danado junto daquelas pessoas do teatro que estavam muito habituadas ao teatro na caixinha à italiana mais formal.
Quando voltámos às Cortes, o grupo falou com o Filipe e fiquei à frente das coisas." A Legenda do Cidadão Miguel Lino, escrita pelo dramaturgo e actor de Leiria, Miguel Franco, foi a primeira encenação de Lázaro.
Uma peça que tem cerca de três horas de duração e inúmeras personagens. O agora responsável pelo Te-Ato foi à loja de electrodomésticos de Franco, na Avenida dos Combatentes da Grande Guerra, para lhe pedir permissão para cortar o texto.
"Fui bem recebido, até que disse que iria fazer adaptações e cortar." Com a sua bigodaça e óculos de fundo de garrafa, Franco olhou para o jovem de 19 anos que se atrevia a pedir-lhe tal coisa e declarou: 'quem me corta texto é como cortar-me um braço!'
"E eu pensei: 'estás lixado que te vou amputar todo'. À revelia, fiz as adaptações e convidei-o para a estreia. No fim, ele disse-me: 'você!… Amputou-me os membros todos, mas fez muito bem!' Ficámos amigos o resto da sua vida."
Reforma aos 90 anos
Lázaro, psicólogo clínico de profissão, diz que ainda sente força para se dedicar à arte de palco, até aos 90 anos. Mas, nesse dia, já pensou em como se irá despedir do teatro. "Faço a última peça, publico o último livro, dou a última consulta e compro uma mota com três rodas [para não cair] e bandeira de Portugal ao vento, e vou dar a volta ao mundo!"
Até lá, fica por aí, pelos palcos e na linha da frente da luta por um local para apresentar o trabalho ao público. A Sala Jaime Salazar Sampaio sempre se revelou acanhada e com pouco espaço. Tanto horizontal, como vertical. As peças encenadas são limitadas pelas características da sala.
"É um problema nosso e d'O Nariz – Teatro de Grupo, com quem falamos regularmente. Não temos salas condignas. Muita da nossa estética teatral é ditada pelo espaço disponível. No Te-Ato, não há movimentos verticais. Se eu puser o Miguel Sarreira em cima de uma cadeira, ele bate com a cabeça no tecto! Se tiver quatro actores em cena, o palco está cheio."