A escassez de oferta e a subida dos preços das casas, quer para compra quer para arrendamento, contribuíram para uma tendência que começou por se vulgarizar em Lisboa, mas que também já se verifica no distrito de Leiria. Trata-se da conversão de lojas e de escritórios em habitações, mudança que, por ter de obedecer a vários critérios e ser muitas vezes morosa, acaba nalguns casos por acontecer sem a devida autorização.
Contudo, acredita a Associação Nacional de Proprietários, urbanistas e agentes de mediação imobiliária ouvidos pelo JORNAL DE LEIRIA, essa poderia ser uma saída virtuosa para o problema habitacional que o País enfrenta, e que poderia, eventualmente, decorrer com recurso a parcerias público- privadas.
“Loja transformada em T1, ao nível do Rés-do-chão, no centro da cidade”. Assim começa o anúncio que põe à venda, por 80 mil euros, um imóvel situado nas Caldas da Rainha. O “apartamento” tem 37 metros quadrados, wc, quarto com roupeiro, sala e cozinha equipada, aquecimento eléctrico e é vendido “como se encontra”.
Contactada pelo nosso jornal, a agência imobiliária [LER_MAIS]esclarece que o “apartamento” tem afinal de ser vendido como loja, uma vez que o processo de licenciamento para transformação em habitação ainda não está terminado. Norberto Isidro, mediador imobiliário numa outra agência da cidade, a Remax Rainha, explica que, sobretudo pós-Covid, ficaram vazios muitos escritórios e espaços comerciais, porque várias actividades passaram a decorrer através de trabalho remoto e a partir de casa. Uma vez que o preço das habitações tem aumentado e face a essa disponibilidade de lojas e de escritórios, há cada vez mais proprietários a transformar esses imóveis vagos em habitações.
Serão “40 ou 50 só no concelho de Caldas da Rainha”, estima o mediador. No entanto, como o processo de conversão exige o cumprimento de vários critérios técnicos, aprovação das autarquias e não só – a mudança da finalidade do imóvel só pode ser equacionada se todos os condóminos da propriedade horizontal concordarem – algumas destas “casas” acabam por surgir sem licença.
Assim, são arrendadas sem factura e os proprietários só podem vendê-las como loja ou escritório, de acordo com o fim para as quais foram primeiramente construídas, alerta o mediador. Não sendo produtos legalizados, nem sequer devem poder passar pela mediação imobiliária, entende Norberto Isidro. Do seu ponto de vista, este tipo de conversão merecia ser analisada caso a caso e, devidamente licenciada, poderia ser uma solução, por exemplo, para os centros tradicionais, onde muitas lojas estão encerradas.
Esta é também a opinião de Rui Cardeira, agente imobiliário da Century 21- Cardeira e Costa, que trabalha sobretudo nos concelhos de Leiria e da Marinha Grande, onde a habitação vai escasseando. Seria preciso, do seu ponto de vista, agilizar os processos de obtenção de licenciamento de habitabilidade.
Diamantino Caçador, responsável pelas agências imobiliária ERA de Leiria e da Marinha Grande também refere que “pontualmente, têm surgido proprietários que perguntam se é possível converter espaços comerciais em habitações, casos que encaminhamos para arquitectos que trabalham a questão dos licenciamentos”. No entanto, os interessados têm desistido “porque os processos de licenciamento demoram”, explica o mediador que diz desconhecer se algumas destas alterações acabam por se concretizar à margem da lei.
Em todo o caso, defende, “em determinados sítios fazia sentido” que esta possibilidade fosse agilizada. “Em zonas comerciais talvez não seja o caso, porque as lojas acabam por ter rendimento. Mas em blocos de prédios mais escondidos, em zonas menos movimentadas”, é uma hipótese.
Seria necessário analisar “caso a caso a estrutura do ponto de vista técnico, perceber se teria boa habitabilidade”,considera.“Vejo com muito bons olhos este tipo de mudança se temos falta de uso de comércio, de escritórios ou de espaços industriais e se grande quantidade de famílias não tem capacidade para aceder a produtos imobiliários”, defende também o urbanista Herculano Chachinho.
Uma iniciativa que, acredita o especialista, poderia ser implementada com recurso a parcerias público-privadas. Seria até uma forma de revitalizar algumas áreas, acrescenta. “A questão da conversão tem-nos surgido muito”, conta António Frias Marques, presidente da Associação Nacional de Proprietários.
Os interessados têm que pedir às câmaras municipais essa alteração, entregando projecto de alteração, processo que habitualmente envolve “grande demora”. E o problema é que, quando as lojas estão inseridas em prédios, é preciso que os condóminos aprovem a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal. Face à morosidade, “discretamente transformam”. E surgem as queixas nas câmaras, feitas por parte dos outros condóminos, relata o dirigente, para quem “as câmaras deveriam colocar- se mais do lado do cidadão”.
Na Câmara Municipal de Caldas da Rainha têm vindo a surgir pedidos de transformação deste género, constata Joaquim Beato, vereador com pelouro do Urbanismo. Também o autarca refere que é necessário consentimento dos condóminos, em se tratando de lojas ou de escritórios em prédios, bem como de projecto com as alterações. No entanto, afasta o cenário de demora na apreciação, acrescentando que rondará os três meses.
Também não tem conhecimento de obras que tenham decorrido na ilegalidade, embora reconheça que seja possível.
Mais apreensivo sobre a questão está o arquitecto Pedro Santos. Se, por um lado, a conversão destes espaços poderia ser uma solução de emergência para disponibilizar mais habitação, por outro, pressionar algumas zonas das cidades com mais casas do que aquilo que as estruturas de abastecimento de água e esgotos estão preparadas para suportar, seria arriscado.
Por outro lado, entende que faz falta manter nas localidades zonas que tanto comportem residências como serviços e comércio. Correr o risco de dividir as cidades em zonas habitacionais e de comércio quebra a sua dinâmica, promove locais de mero dormitório que carecem de mais meios de transporte para deslocações até aos espaços comerciais.
Citado pelo Idealista, Ricardo Pires Jordão, do departamento de Direito Imobiliário da Belzuz Abogados – Portugal, especifica sobre o que fazer para mudar o uso de um imóvel. “Para alterar a afectação de um imóvel nos casos em que não foram realizadas obras ou após a realização de obras isentas de licenciamento ou comunicação prévia, será necessário obter uma nova autorização de utilização, por forma a verificar a conformidade da utilização prevista com as normas legais e regulamentares que fixam os usos admissíveis, bem como a idoneidade do edifício ou fracção para o fim pretendido”.
Para tal, “deverá ser apresentado um pedido de mudança do tipo de uso do edifício ou fracção, dirigido à câmara e instruído com diversos elementos, tais como, por exemplo, extractos das plantas de ordenamento, plantas de localização, memória descritiva e justificativa, cópia do alvará de licença ou autorização de utilização anterior, entre outros elementos de natureza arquitectónica e magistral”.
“Além disso, no caso das lojas inseridas em prédios, haverá que deliberar a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal em decisão unânime tomada em Assembleia Geral de Condóminos. Este título deverá ser modificado por escritura pública ou por documento particular autenticado, carecendo do acordo de todos os condóminos”. A autarquia irá também deliberar tendo em conta o Plano Director Municipal.