Corria o ano de 1980 e o Guinness Book e seus loucos recordes estavam na moda. Influenciado pela febre, o bombeiro e ciclista Carlos Vieira procurou no livro um desafio à sua altura e… encontrou! Estava mais do que visto que as 187 horas e 28 minutos em cima de uma bicicleta de Vivekananda, um ilustre cidadão do Sri Lanka, não poderiam durar muito tempo.
Os amigos aconselharam-no a não embarcar na aventura, mas o ex-ciclista do Sporting, antigo colega de Joaquim Agostinho, não os ouviu. Como gostava de percorrer grandes distâncias e de estar muitas horas em cima da bicicleta começou a traçar uma estratégia para bater o anterior máximo mundial de resistência em ciclismo. “Foram três anos a preparar-me”, recorda Carlos Vieira.
“Dormia em casa, fazia 24 horas nos bombeiros e ia para o estádio fazer dois dias seguidos de bicicleta. Voltava a trabalhar nos bombeiros e só depois é que ia para a cama.” Foi, depois, aumentando a duração dos treinos. O mais longo que fez foi de cinco dias e oito horas.
Em Setembro de 1992, o atleta tenta pela primeira vez entrar no Guinness Book, mas o falhanço é rotundo. “Foi um fenómeno”, diz. “Na primeira tentativa e só aguentei quatro dias e meio, menos do que habitualmente fazia nos treinos. Oficializei o pedido junto do Guinness, arranjei um grupo de amigos para me apoiar, mas ao quarto dia queria comer e não tinha ninguém, estava tudo a dormir. Tive de encostar.”
A frustração deu rapidamente lugar a mais e mais vontade de repetir a tentativa. Nove meses depois, nada poderia falhar. “Arranjei uma comissão a sério, malta competente, e um grupo de ciclistas que andavam sempre comigo, três de cada vez, para nunca ficar sozinho.”
No dia 8 de Junho de 1983, a aventura começava. Carlos Vieira parte então para as 191 horas mais longas da sua vida. “Disse que batia o recorde ou morria em cima da bicicleta.”
O dia D
O percurso fazia-se na zona adjacente ao Estádio Municipal, ainda na versão anterior. Passava ao lado do campo pelado – que já não existe – e do pavilhão – que também já era. “Na altura não havia nada para fazer, só dois canais na televisão e o pessoal vinha para aqui apoiar-me. Vinham escolas inteiras apoiar-me e até bandas de músicas.”
A cidade estava em festa por um homem que estava a sofrer horrores. A partir do sétimo dia, a dor sobrepôs-se a qualquer outra sensação e o bombeiro-ciclista que perdeu várias vezes o discernimento. “Contaram-me – porque eu não me lembro – que perguntei: ‘o que ando aqui a fazer?’ Disseram que estava a bater o recorde do mundo e eu respondi: ‘são malucos, agora a bater o recorde…’ Perdi completamente a noção.”
Carlos Vieira tem recordações que o levam a crer que ultrapassou os seus próprios limites. “Doía-me tudo, os médicos diziam para eu beber cinco litros de água e eu nem conseguia. Via as pessoas ou os animais que se mexiam com uma aura, um arco-íris à volta do corpo, e ouvia quem falava comigo com eco, como se estivessem no fundo de um poço.” As mudanças de humor constantes eram outra prova de que nem tudo estava bem.
Para os anais ficou o episódio mais caricato de oito dias em cima de uma bicicleta. Para mitigar o sofrimento, Carlos Vieira utilizou bifes dentro dos calções e uma couve na cabeça. E se o vegetal ajudou a refrescar o cérebro, a verdade é que o naco de carne para amaciar o selim acabou por não ter o efeito desejado.
“Sou ciclista desde pequeno e pensava que tinha o rabo calejado, que não ia precisar de nada. O tanas! Andava com o rabo todo em ferida. Os dias mais quentes desse ano foram precisamente quando estava a tentar bater o recorde e o sangue, com o suor, corria-me pelas pernas abaixo.”
E a ideia dos bifes, de onde surgiu? “Olhe, utilizei a técnica do anterior recordista, mas foi ainda pior. Quando o bife entrava em contacto com a ferida sentia a refrescar, mas acabou por ser contraproducente.”
No livro
Às quatro da manhã do dia 16 de Junho, Carlos Vieira deixa então a marca de Vivekananda para trás e grava a letras de ouro o nome no Guinness Book of Records. Em estado frágil, mas sem querer ficar por aí. Passadas três horas, o ponto final.
“O médico, o doutor Eusébio, queria que parasse. Mas eu estava teimoso, porque tinha a bancada cheia, a gritar por mim. Só que ele disse: a partir deste momento, não assumo mais responsabilidade, já chega. E lá parei.”
O hino nacional tocou na aparelhagem do estádio e Carlos Vieira entrou na ambulância. Destino: hospital dos Covões, em Coimbra. Quando acordou, não sabia o que lá estava a fazer.
“Vejo aquela lâmpada das salas de operações e estou rodeado de batas brancas. O que se passa? Estou no céu?” Para trás ficaram oito dias em cima de uma bicicleta, da qual só podia sair para satisfazer as necessidades fisiológicas – mais de uma hora foi descontada do tempo final – ou para pegar noutra bicicleta quando tinha um furo.
O título do Correio da Manhã de 17 de Junho de 1983 era sugestivo: “De couve na cabeça e bife no traseiro, aí vai ele para o Guinness”. Carlos Vieira foi capa na espanhola Hola, na brasileira Globo e foi a abertura do telejornal. Em suma, colocou Leiria no mapa, idade que ainda hoje lhe presta a devida vénia. “Toda a gente me cumprimenta em Leiria, mas muita nem sei quem é.”