Esteve até à última a tentar resistir. Mas a ideia de passar este 13 de Maio sem “visitar Nossa Senhora” fazia-lhe “doer o coração”. Na manhã do dia 12, Manuel Cardoso, de 56 anos, deixou Lisboa e pôs-se ao caminho. Não a pé, como tantas vezes fez ao longo dos últimos de 30 anos, mas de carro. Já na Cova da Iria, procurou aproximar- se o mais que pôde da Capelinha das Aparições.
Chegou até à zona da XIV estação da via sacra, junto à Praceta de São José, onde se instalou. Preparado para a chuva, com chapéu e impermeável, aí esperou para assistir à procissão das velas dessa noite. A sua intenção era ficar também para o dia seguinte. Mesmo com uma grade e arbustos a separá-lo do recinto de oração, dava por cumprida a promessa, feita há uns anos, quando teve um acidente e “ia morrendo queimado”, de, enquanto o corpo lho permitir, ir a Fátima todos os anos.
Manuel Cardoso não escondia, no entanto, alguma revolta pela forma como decorreu este 13 de Maio, sem peregrinos no recinto do Santuário. “Fátima não faz mal a ninguém. Por que é que se podem fazer umas realizações e outras não?”, questionava, lamentando também o “excesso” de policiamento na Cova da Iria, referindo- se ao dispositivo montado pelas forças de segurança para dissuadir a entrada de pessoas no recinto.
Uns metros mais à frente, junto ao gradeamento colocado nas traseiras da Basílica da Santíssima Trindade, António Neno ajoelhou-se durante largos minutos. Terminado o momento de oração, conta que veio de Murtosa, distrito de Aveiro, para rezar “junto de Nossa Senhora”. Deslocou- se de comboio até à estação de Caxarias, Ourém e daí seguiu a pé até à Cova da Iria. Já sabia que não poderia entrar no recinto, mas, mesmo assim, “não podia deixar de vir”.
Veio e, mesmo à distância, não deixou de se sentir participante naquela que D. António Marto, bispo de Leiria-Fátima, classificou como a peregrinação “mais difícil, [LER_MAIS]mas, porventura, mais interpeladora” da história deste santuário mariano.
Irene, João e Ricardo representam peregrinos
Foi, sem dúvida, um 13 de Maio inédito na Cova da Iria. O mar de gente deu lugar a um vazio e um silêncio ensurdecedor. Na noite do dia 12 ficou por registar o habitual manto de luz formado pelas velas erguidas aos céus pelos milhares de peregrinos, acompanhando a procissão com o andor de Nossa Senhora. Desta vez, no percurso entre a Capelinha das Aparições e o altar principal do recinto, a imagem fez-se acompanhar apenas de um pequeno cortejo de pessoas. Não mais do que 100, entre funcionários e convidados do Santuário e celebrantes.
No grupo seguiam Irene Dantas, João Coimbra e Ricardo Pereira, escolhidos pelo Santuário para “homenagear todos aqueles” que não puderam participar nesta peregrinação. Natural de Trancoso, mas a residir em Tires, Irene Dantas, 73 anos, encarou a oportunidade como “um convite de Nossa Senhora”. “Foi como se me dissesse: ‘vem à minha casa que hojequero estar contigo’”, partilha a mulher, que organiza peregrinações à Cova da Iria. Este ano, já tinha abandonado a ideia de ir a Fátima, mas um telefonema do Santuário mudou-lhe os planos. “Fiquei radiante”.
João Coimbra, de 17 anos, era também o rosto da felicidade naquela tarda do dia 12, quando, em conversa com o JORNAL DE LEIRIA, confessava uma “alegria e uma honra gigante” por ter sido escolhido para representar os jovens que costumam peregrinar a Fátima, onde ele próprio se inclui.
É que, apesar da juventude, João é uma presença habitual na Cova da Iria. “Costumo vir a pé, integrado em grupos de movimentos católicos aos quais estou associado”, conta o jovem, residente na Azinhaga, distrito de Santarém, que, ao olhar para o vazio do recinto, que “tantas vezes está a abarrotar”, sente um misto de emoções. Tristeza e desolação, pela ausência de peregrinos, mas também “orgulho por saber que as pessoas estão a ser responsáveis e a rezar em casa”.
Bispo alerta para a pandemia da pobreza e da indiferença
Depois de na noite anterior ter lembrado todos aqueles que têm sofrido e lutado contra a Covid-19, na homilia do dia 13 o bispo de Leiria-Fátima chamou a atenção para uma pandemia, porventura mais grave, que se está a gerar, “a da extensão da pobreza”, pedindo também solidariedade para combater “o vírus” da indiferença e do individualismo.
“A pandemia, com a longa interrupção da vida normal, traz terríveis consequências económicas, sociais e laborais. Já está a gerar uma pandemia mais dolorosa, a da extensão da pobreza, da fome e da exclusão social”, afirmou o cardeal António Marto, durante a homilia do segundo e último dia da peregrinação.
O bispo frisou que as consequências económicas da pandemia já batem “à porta das Caritas diocesanas e de várias paróquias e soa a sinal de grito de alarme”. Essa “pandemia” social, notou, é “agravada pela cultura da indiferença e do individualismo”, salientando que “o vírus da indiferença só é derrotado com os anticorpos da compaixão e da solidariedade”.