Após um ano em viagem, Mara atende o telemóvel na Bolívia para descrever, entre outros episódios, aquele em que acampou numa praia de Puerto Madryn e durante a noite escutou as baleias a nadar no mar.
Deixou Portugal a 3 de Fevereiro de 2022 num voo com destino a Buenos Aires (e escala em Madrid) e depois de aterrar na Argentina já percorreu mais de 11 mil quilómetros de bicicleta, ao longo de seis países, na América do Sul.
Pelo menos até ao próximo Verão, vai continuar na estrada.
A chamada através do Whatsapp apanha-a na cidade de Oruro, a 3.700 metros de altitude. Para fintar o cansaço, os locais estão acostumados a mascar folhas de coca. “A planta da coca é sagrada e vista como planta medicinal para muitas coisas”.
Uma família com que Mara Mure? se cruzou por acaso num quiosque ofereceu-lhe boleia e alojamento e, à noite, acompanhou-os a um casamento. “As pessoas que vou conhecendo e as ligações que vou criando ficam para sempre”. Dolores, que a acolheu em Buenos Aires e a levou a praticar escalada; o casal argentino que lhe abriu a casa durante um mês e que conhecia do Atlas, em Leiria; Ivan, que lhe ensinou sobre permacultura e construção em adobe, durante a estadia numa comunidade, no Uruguai. Ou mesmo encontros breves: o inglês de meia idade com quem partilhou o asfalto ao longo de 20 quilómetros, o camionista que a conduziu entre Assunção (no Paraguai) e Salta (na Argentina), os franceses com quem falou pela primeira vez no Chile e que reencontrou na Argentina – “é um sentimento incrível”, resume. “Cada um tem a sua pancada e não há dois viajantes iguais”.
Com mais de 4 mil seguidores no Instagram, onde vai publicando fotografias e ilustrações, a artista plástica de Leiria já acumula quatro cadernos com desenhos que são o registo da viagem que começou há um ano. As cataratas de Puerto Iguazú na Argentina, onde aprendeu malabarismo e artesanato, a viagem de barco de três dias desde Puerto Natales, no Chile, o Salar de Uyuni, na Bolívia, que é o maior e mais alto deserto de sal do mundo, as montanhas de El Chaltén, na Patagónia, e a caminhada em que encontrou duas mandíbulas humanas, na Argentina, são recordações obrigatórias.
Todos os momentos inesquecíveis que já fixou no diário pintado a guache, espera transformá-los num livro, quando regressar à Bajouca, onde vivem os pais. “Vou voltar em Agosto, tenho um voo marcado”, adianta. “Festejo os meus anos aí, passo o mês de Agosto, que é o mês do emigrante, em Portugal”. Até entrar no avião, em Caracas, na Venezuela, ainda planeia atravessar o Equador, a Colômbia e, se a situação política o permitir, o Peru.
A jornada de Mara Mure? iniciou-se em Mendoza, em direcção ao extremo sul da América do Sul, Ushuaia, onde inverteu o rumo e regressou a norte, num trajecto mais aos zigue zagues do que em linha recta e mais em contacto com a Natureza do que dentro de cidades. Na América do Sul, já pedalou na Argentina, no Brasil, no Chile, no Uruguai, no Paraguai e na Bolívia, ou seja, no final, só ficariam a faltar o Suriname, a Guiana, a Guiana Francesa e algumas ilhas.
Entre outros locais, passou 122 noites em tenda e 193 em casa de habitantes locais. Só pagou para dormir em 47 noites. Puerto Iguazú foi onde se demorou mais tempo (23 dias seguidos) e pedalou em 152 dias, com um máximo de 175 quilómetros percorrido num único dia.
Entretanto, leu O Velho Expresso da Patagónia, de Paul Theroux, As Veias Abertas da América Latina, de Eduardo Galeano, e também o clássico Na Patagónia, de Bruce Chatwin, autor que num outro livro,The Songlines, reflecte sobre a transição do nomadismo para o sedentarismo.
“Cruzei-me com um viajante que me disse que um ano a viajar equivale a um ano de cão”, conta a artista de 26 anos ao JORNAL DE LEIRIA. Ou seja, sete anos em vida de humano. “São duas realidades muito diferentes, ser nómada ou ser sedentária”, comenta. “É bom estar num lugar, criar relações, ver as coisas crescerem”.
No entanto, já projectos para novas aventuras, sempre na bicicleta que levou de Portugal e que pertence ao pai. “Uma pessoa vai percebendo que se pode viajar com pouco dinheiro ou até sem dinheiro”. Além de poupanças conseguidas a trabalhar nos meses que antecederam a partida, Mara está a financiar-se com desenhos que vende para a Europa e envia por correio e outros que vende localmente nas povoações que visita. Também faz e vende pulseiras.
Em troca de alojamento, já realizou pequenas tarefas numa quinta. Mas a casa é mesmo a bicicleta e a tenda que transporta consigo. Costuma acampar e é raro ficar em unidades turísticas. Por vezes, viaja com companhia. Se encontra outros viajantes de bicicleta, é certo que há conversa. São raros os portugueses (está em contacto com um deles, a deslocar-se para Sul desde o México) e é comum cruzar- se com viajantes que estão a ligar o extremo norte (Alaska) e o extremo sul (Patagónia) do continente americano.
Ao deslocar-se de bicicleta, num ritmo mais lento, dá-se conta de como a paisagem se altera, descobre as diferenças subtis entre as pessoas, identifica contrastes entre culturas que parecem idênticas. “Há muitas comunidades indígenas, muitos pueblos originais”, assinala. “A moeda do Peru chama-se Sol, não é incrível?” Por onde tem andado, vê modos de vida mais ligados à Natureza, a “mãe terra”, algo com que se identifica. “Para nós, a Europa é o centro, é a nossa bolha”, no entanto, “estar noutro continente é ver as coisas com uma perspectiva completamente diferente”, ou seja, “muda tudo”.
Ser mulher e viajar sozinha, com frequência causa estranheza. Quando a conhecem, “80 por cento não sabe onde é Portugal” e alguns “pensam que é um estado do Brasil”. Mas também há quem veja a bandeira e imite o grito com que Cristiano Ronaldo celebra os golos. Não é comum sentir-se insegura. “As pessoas ligam muito a pobreza ao crime. É o medo que vêem na televisão. São coisas que, na realidade, na estrada, eu não vejo”. A pobreza sim, é evidente. “Principalmente, aqui, na Bolívia”, diz ao JORNAL DE LEIRIA. “As pessoas vivem com o essencial”. Generosas, mas, muitas delas, iletradas, incapazes de ler, escrever ou apontar a própria morada num mapa. “É chocante”.
No caminho, aproveita o exemplo de outros viajantes portugueses, como Tânia Muxima e Luís Simões (World Sketching Tour). “Para além do meu pai, que é uma inspiração para mim”.
Tudo começou “como um teste, uma prova”, conclui Mara Mure?. “E fui ficando”. Já tinha estado na Islândia, na Roménia e na Polónia. Os três meses na América do Sul prolongaram-se além do previsto – já são 12. “Não havia tanta coisa que me fizesse voltar tão rápido”, justifica-se. “Cada um está na sua vida e às vezes o sonho que a gente tem não é o sonho de outra pessoa”.
O que é preciso para pedalar 11 mil quilómetros na América do Sul? “Força de vontade”, responde. E sem fim à vista, porque “os viajantes estão sempre a viajar”.