Há muito que diz que a sua vida não dava um livro. Mas, em Contra Mim, o que temos é uma espécie de livro de memórias, até aos 13 anos. O que lhe passou pela cabeça avançar para este projecto?
Andava, há anos, a coleccionar alguns episódios da minha vida, sem destino e a achar que, mais tarde ou mais cedo, pudesse compilar uma espécie de anedotário da vida, mas, este ano, o confinamento criou-me a impressão de estar diante de um espelho. Cortados e impedidos os encontros, a casa torna-se num potenciador de quem somos. A solidão é como estarmos em dobro… em demasia. Somos tudo o que há de nós próprios. Era impossível passar o susto da pandemia sem pensar quem sou, sem ponderar acerca da força que tenho, do futuro que ainda espero ter. Os textos que já estavam escritos, e fazem parte deste livro, sugeriram-me um ponto de partida para um estudo acerca do que são os meus princípios elementares, do que foram e são os meus sonhos, que expectativa tenho de ter um futuro e que tipo de futuro quero ter. Eu achava, de facto, que a minha vida não daria um livro, porque estava metido nos romances e o que era literário estava insinuado no meio da ficção, mas insinuar não era o suficiente, não esgotou nunca as questões. Este livro acaba por se virar contra mim, impondo-se com uma análise de alguém que passa uns meses a ver-se ao espelho.
Há, no seu relato, um quotidiano pobre e algo violento do final da ditadura, mas há muito humor e ironia neste livro, especialmente, no confronto entre o menino que foi e o homem que é, o que pensava ser a realidade e o que ela realmente foi.
Não podia lidar comigo mesmo, enquanto personagem, sem me propor uma certa diversão, porque é da minha natureza. Tenho a tendência para uma estética mais intensa, apraiam-me questões fracturantes e passagens de algum tremendismo até, mas sou um indivíduo divertido, que, dificilmente, me levo a sério ou levo a sério determinadas questões. Procuro sempre ver as coisas a partir de um ponto de vista permissivo e até esperançoso. Pegando em mim como questão fundamental de um texto, não poderia deixar de me permitir essa natureza. Lido comigo, nessa forma escrita, com a mesma desimportância que me dou no dia-a-dia. Algumas coisas mais terríveis são suportadas porque, em algum instante, aprendemos a rirnos delas. É uma maneira de as tornarmos suportáveis e humanas. O humor humaniza-nos. Humaniza tudo quanto nos acontece de antinatural. O que normaliza as coisas é a possibilidade de voltarmos ao riso e de encararmos muitas das nossas dores como instantes de deriva quase ridícula. Rejeitamos o sofrimento por rirmos dele.
Quem ler o capítulo Tão Pouca Madeira Para Flutuar os Homens, consegue vislumbrar como se encetou a sua ligação à Islândia e ao cenário que aborda no livro Desumanização. Viveu e vive nas Caxinas, conhece aquele povo sofrido, conhece o mar, a morte e a perda.
As Caxinas oferecem-nos uma humanidade frontal. Tudo o que ali acontece, parece acontecer na cara e de um modo tendencialmente extremo. Marca-me muito viver ali. Não é possível viver-se 40 anos num lugar daqueles, onde o perigo e a dor da perda são constantes, sem que isso não nos faça a personalidade. Nos meus livros, e, desde logo, na Desumanização, está presente a evidência de uma catástrofe constantemente anunciada, ao mesmo tempo que há uma resiliência e resistência que encontra fuga por um enfurecimento, que permite que, ao invés de sucumbirmos à dor, nos ergamos pela fúria. As Caxinas vivem estoicamente sem psiquiatria. As pessoas enfrentam o que enfrentam como se houvesse uma capacidade de se reerguerem na tradição e não com auxílio das ciências. Não são as medicinas que mantêm aquele povo são. O que faz com que aquelas viúvas – são os homens que naufragam – se suportem umas às outras com uma sabedoria que é legada pela tradição e habituação à perda. É como se houvesse um costume para a perda e para o sofrimento.
Quando mostrou este livro à sua família, corroboraram ou havia coisas que não eram como as recordava?
Há coisas que se desviam um pouco. A minha mãe tem dúvidas, mas ela tem muitas dúvidas porque teve cinco filhos e confunde as histórias de uns filhos com os outros. As minhas irmãs lembram-se melhor de algumas coisas e outras relembraram a partir da leitura. Viram a minha perspectiva pela primeira vez. Para mim, não é muito importante que o livro corresponda factualmente a toda a verdade. É difícil escrever uma autobiografia. Jamais será uma reposição da vida como ela o foi, pois será sempre uma alusão, uma espécie de edição daquilo que retivemos por algum motivo, com a participação da imaginação. A nossa história é aquilo que vivemos, junto com o que soubemos entender e com o que imaginamos. Eu mostro a construção de um indivíduo que resulta num escritor. Não sou já eu, porque esse menino está à distância de várias décadas… há 36 anos que estou fora deste livro. Esse menino produz um indivíduo que se entrega às palavras. Houve qualquer coisa na minha vida que, a cada instante, pareceu preterir outras possibilidades para me deixar apenas entregue a uma certa solidão onde havia sobretudo palavras.
A sua mãe, com quem percebemos haver muita cumplicidade, foi fundamental para que fosse para a escola aprender mais palavras para coleccionar.
Ela entendeu o que, na escola, me poderia interessar. Sabia que eu era fascinado por elencar palavras, mesmo antes de as entender. Por vezes, só a sua força fonética ou a impressão de elas poderem ser importantes, de poderem dizer algo importante, mesmo que não soubesse o que isso seria, já me atraia, que eu vivia pedindo para me repetirem as palavras e me voltarem a dizer determinadas coisas. A minha mãe sabia que seria, para mim, um património tremendo, poder eu próprio criar uma estrutura de memória interna. Foi o que ela me disse para me convencer a ir à escola. Eu tinha clara consciência de que aprenderia a fazer o meu arquivo, mas teria de me sujeitar a umas pauladas e coças dos professores, de vez em quando.
Não foi a última vez que uma mulher o “subornou” com as palavras. A sua segunda namorada fê-lo com poemas.
A Maria da Luz. Foi tão atraente para mim que ela tivesse um livro de poemas, ainda que ela – e eu! – com aquela idade, não os soubéssemos ler… foi tão avassalador que eu quis imediatamente que ela fosse minha namorada.
E ela só tinha de emprestar o livro de poemas de António Ramos Rosa, que tinha em casa.
Só tinha de o trazer. Na minha cabeça, loucamente, achava que dela haveriam de brotar outros livros e outros versos que a poesia lhe diria respeito como por natureza. Como se ela fosse uma autoridade investida de um superpoder poético, mas… não. O livro deve ter ido parar a casa dela por algum acaso. Naquele tempo já me era interessante escrever coisas que eu não entendesse. Mas quando me deparei com aquele livro do António Ramos Rosa percebi que ele era tão hermético e tão para lá daquilo que a minha cabeça poderia imaginar que aquela espessura e inelegibilidade me fizeram crer que a literatura e a poesia estariam num lugar inexplicável e mais ou menos inatingível. Como se escrever fosse um ofício de utopia. Abracei aquilo e percebi que queria ir em direcção ao impossível. Senti que a minha vida nunca seria normal, que nunca teria como ser um rapaz normal e talvez teria de ficar sozinho para sempre. É, de certa maneira, a tese do livro e… cá estou eu.
Quando fala acerca das conversas com o seu melhor amigo de infância, o Chiquinho, embora aparentemente concordasse com o que ele dizia acerca do que era o futuro, havia uma reserva mental. O jovem Valter já via para lá daquilo que o Chiquinho via.
As coisas, para mim, eram impositivas. Sentia que não tinha como fugir àquilo. Desde novinho, que sentia que havia algo que me compelia para um resultado. O Chiquinho tinha uma cabeça engenheira, prática. Para ele, as coisas eram absolutamente normalizadas e padronizadas. Apenas tinha de seguir uma determinada receita para alcançar um qualquer resultado. Eu não tinha isso. Não tinha acesso a uma receita. Não as havia para escrever um poema como os do António Ramos Rosa. Por mais que lesse os trabalhos dos poetas que me fascinavam, não tinha como entender aquilo e nunca poderia dominar verdadeiramente um poema. Estaria sempre dominado pelo poema.
Isso era o avesso da cabeça do Chiquinho.
Ele precisava de dominar todas as coisas para as arranjar à sua feição. Quando nos despedimos, no fim do livro, com a sensação de que jamais nos voltaríamos a ver, porque ele ia viver para Proença-a-Nova, havia, do lado dele, uma frustração porque eu nunca seria adulto. Não sabia sê-lo. A minha mania da poesia, das palavras, dos desenhos e de toda aquela contemplação estética e artística, para ele, era uma forma de eu continuar a ser criança. Como se fosse um modo de ser imprestável… e ele entendia que tínhamos, de uma vez por todas, de crescer atentos ao que tinha que ver com trabalhar, responsabilizar- nos, arranjar uma namorada, casar, ter filhos, e fazer com que o ciclo da vida se completasse; passarmos a ser os nossos pais, para, depois, passarmos a ser os nossos avós e morrermos com o ofício completo. Despedi-me dele a pensar que se tomasse qualquer decisão que fosse no sentido contrário da poesia, estaria a tomar uma decisão contra mim… Como se ser adulto fosse contra mim. Este livro existe como se eu estivesse à beira de entender se já sou adulto ou se ainda estou aquém da idade adulta. É uma reflexão para saber, até que ponto podemos ter 49 anos e seguirmos como as crianças… ou se, aos 49 anos, temos de seguir como os adultos. Ou se não havia, na minha infância, questões muito mais prementes levantadas e respostas que estavam dadas que eu esqueci, quando envelheci, e se, ser-se adulto, em vez de uma ciência, não será uma espécie de neblina, deitada em cima de uma ciência que perdemos. Em algumas coisas, as crianças resolvem as coisas com muito mais facilidade.
“Amar um homem é amar o rapazinho que ele é”?
Sim… Esta dimensão infantil que todos nós fomos e, de algum modo, contemos, pode ser vista como um lugar de profunda sensibilidade interior, como [LER_MAIS]se fosse a memória dessa criança. A recordação dela poderá servir para medir qual é a nossa potência humana. Isto é, que condição humana, maior ou menor, detemos. Quanto mais comovidos pela criança que fomos, mais humanos nos poderemos considerar.
No fim do livro, numa nota de autor, recorda a primeira vez que usou óculos. É um episódio que recorda o nascimento do “homem novo”, de que fala São Paulo. Começar a usar óculos foi como o perder das escamas que cegavam, que lhe permitiu ver o mundo como jamais o tinha visto. No seu caso, isto acontece no início da adolescência e parece ser um rito de passagem.
Houve aí um recomeço tremendo. Sinto que, até aos óculos, o mundo era bastantemente aquilo que eu imaginava. Porque achava que via, mas não via. Percebi que o meu fascínio pelas palavras vinha do facto de, através delas, ver muito melhor. Nelas, não havia miopia. Terminar o livro com esse episódio, tem que ver com essa passagem. É, como, finalmente, descobrir uma poção mágica que me deixasse habitar o mundo, tal qual ele é, e não desfasado de todas as coisas e aprisionado na minha própria deficiência ocular. Isso é muito simbólico, no que diz respeito à intensificação que fiz das palavras porque o que eu não via – que achava que ninguém veria -, eu tentava dizer através da imaginação. Ainda hoje, o que acontece com os meus livros passa por uma ansiedade de presentificação e de ver aquilo que não é possível ver. Somos muito visuais e usamos as palavras para compor instantes que apelam muito à visão.
A minha cor é o cinza
Se tivesse de escolher uma cor para si, Valter Lemos seria o cinza. “Aquela cor que, parecendo não estar e à distância sendo confundida com um branco ou, com menos luz, com negro, é também aquela que, interceptada por outra cor, a potencia.”
Quando era criança, disseram-lhe que as pessoas de África tinham uma cor diferente por comerem terra. Até lhe perguntaram qual era a sua cor interior, por ter vindo de Angola. Então, era vermelho, qual é a sua cor hoje?
Cinza. É aquela cor que, parecendo não estar e à distância sendo confundida com um branco ou, com menos luz, com negro, é também aquela que, interceptada por outra cor, a potencia. Sinto que estabilizei quem sou, mas, em determinados momentos, tenho contrastes abissais. Isso não é incoerente, nem paradoxal, faz parte de mim. Faz parte de mim, num dia, estar obcecado por uma barulheira dos Sonic Youth e, noutro, estar a ouvir Franco Corelli a cantar Puccini o dia todo. A minha estabilidade é composta por picos de diferença que se extremam e essa é a minha natureza e a minha estabilidade.
E qual é a cor dos portugueses por estes dias?
Os portugueses têm uma cor bem lixada por estes dias. Bem raspada com uma lixa. Têm todas as cores, mas todas elas estão bem lixadas. Estamos num tempo abeirando uma catástrofe e protelando a consciência disso. Uma das coisas que mais me tem frustrado em pessoas próximas é estarem ainda na dúvida se irá haver uma crise, quando tudo à volta já derrubou… Não sei que mais provas precisam para perceberem que se devem acautelar, fortalecer e embrutecer em relação aos métodos, aos cuidados e, sobretudo, que devem ter estratégias, cujos planos não sejam à semana ou ao mês, e que prevejam minimamente como estarão no final do próximo ano. Tenho a sensação de que algumas pessoas não têm um balão que as segure mais do que 42 dias. E isso é muito pouco porque a crise que se instalará, creio que será a pior das nossas vidas.
Após a Covid-19, iremos retirar lições da pedagogia da catástrofe ou, pelo contrário, continuaremos iguais, sem alterar comportamentos?
Não se irá aprender muito. A minha esperança não é tanto que a sociedade se torne erudita pela catástrofe, da economia ou da pandemia. Como colectivo, não se irá aprender grande coisa. Mas como sou um homem de esperança, o que vai acontecer é que este desafio irá catapultar uma espécie de elite inspiradora. Em todos os tempos em que somos verdadeiramente desafiados, surgem alguns heróis. Vivíamos numa cidadania flácida, sem sobressalto, onde todos refilavam de barriga cheia, porque as coisas iam progredindo com alguma destreza e estavam relativamente bem. Esse tempo de estabilizada benesse fez com que não fossem necessários heróis. Isto significa que, provavelmente, as figuras inspiradoras estivessem ocupadas em gerir resorts, alojamentos locais e teatros municipais. A minha esperança é que, metidos neste turbilhão, apareçam algumas figuras brilhantes que se preocupem especificamente com isto de inspirar as massas a um futuro melhor. Em todos os processos revolucionários é necessário o povo, mas não é o povo inteiro que planeia e define uma revolução.
Tem havido fenómenos de demagogia que se apresentam mais fáceis e confortáveis de seguir do que lideres que nos inspirem e, com sacrifício, nos levem a algo maior.
Neste instante, apareceram os vampiros, os oportunistas, procurando parasitar a oportunidade que este susto traz. Um povo com medo é um povo entregue. No caso português, o que me parece ser um pouco mais feliz é que o advento da política grotesca é um pouco tardio. Aparecer entre nós no ano em que Trump é afastado e humilhado é uma vantagem maravilhosa para Portugal. Não precisamos de ser laboratório de experiências. Elas já foram feitas nos EUA, numa das maiores e mais ricas democracias do mundo, e foi perdida. Foi feita no Brasil, com uma desgraça tremenda… dá-me a sensação que, por mais estupidez que se possa instalar, que iremos auferir da sorte de sermos tardios. Em algumas coisas é bom que não sejamos vanguarda. Aqui as coisas tendem a acontecer ao retardador e, desta vez até é bom, porque temos provas de que isto é um fenómeno nojento e espero que as pessoas saibam distinguir e dominar as suas frustrações, para que elas não dêem lugar a um voto de vingança que, invariavelmente, funciona em desfavor de quem se tenta vingar.
Quando lhe perguntavam o que queria ser quando fosse grande, respondia… “feliz”.
Respondi muitas coisas, porém, subitamente, achei que o melhor do mundo era ser feliz. Quis ser tanta coisa e era tão baralhante ter de escolher um percurso, sobretudo se se pensar que a única coisa garantida que me aparecia era escrever, coisa que nunca pensei que pudesse tornarse uma profissão. O futuro era uma espécie de campo aberto sem qualquer estruturação e, a determinado momento, a única coisa decente para pedir e planear era ser feliz. Que é o que toda a gente quer. Se não somos educados para ser felizes, somos mal educados.