Como faz a selecção das histórias que quer passar do papel para filme?
A comédia, para mim, é um subterfúgio, porque, geralmente, sou uma pessoa bastante triste e reservada. Não consigo separar completamente a vida pessoal da vida profissional. Quando escrevi, em 2018, o Se Poirot Estivesse Aqui, que passou na competição da semana passada no Shortcutz Leiria, estava a passar por um momento difícil. O que me deu alento foi pensar que, se voltasse a escrever ou filmar, conseguiria sair da situação. Avaliei o que conseguiria fazer, tendo em conta a limitação de orçamento, com uma coisa pela qual sentisse paixão. A literatura, provavelmente, será o meu primeiro amor, a par com o cinema, e foi com essa ideia, com uma personagem que é apaixonada – na verdade, obsessiva compulsiva – pelo detective Poirrot, de Agatha Christie, que decidi avançar.
Nas histórias que escreve para cinema, há influência do realismo mágico?
Adoro esse estilo. Adoro a fantasia, adoro que, no mundo dessas personagens, ela seja uma parte integral da realidade. Adoro os mundos criados por Gabriel García Márquez e por Isabel Allende. Ficaram muito vincados em mim e nunca me consigo desassociar de forma completa. Inconscientemente, vou buscar elementos do exagero, do absurdo, da fantasia… Adoro Mia Couto, em especial, o livro Terra Sonâmbula, que me marcou imenso. Gosto da terra, das personagens, do autocarro. É um mundo lindo.
Quando tinha 17 anos, venceu um concurso de escrita, promovido pela Antena 3, sobre ficção científica. De uma assentada, nesse conto, juntou a escrita e a Ciência, que acabou por ser a sua formação académica. Escreveu sobre o quê?
Foi há 20 anos… No seguimento do lançamento do álbum We Are All Made of Stars, do Moby, a Antena 3 lançou um concurso nacional para uma história de ficção. Eu nem sequer tinha computador ou internet e comecei a escrever sobre um astronauta que descobria mundos diferentes. Escrevi 12 páginas à mão, metias no correio e só depois, em casa de uma amiga, é que percebi que só podia ter uma página e tinha de ser impressa. Mesmo assim, meses depois, ligaram-me a dizer que tinha ganhado e, como prémio, levaram-me à NASA. Gostei daquele desafio de poder ter uma liberdade criativa sem me preocupar se gostam ou não da história. Cheguei a escrever nas páginas que enviei: “mesmo que não ganhe o concurso, poderiam dizer-me se acham que tenho jeito para escrita e se gostam da história?”. O desafio, para mim, era esse; criar uma história. Não era o prémio. Sou uma miúda de uma vila do Algarve e, para mim, era inconcebível pegarem em mim e levarem-me à NASA, nos EUA. No meu mundo, não havia essa possibilidade.
Qual é, para si,o melhor take?
É difícil responder a essa pergunta, porque, muitas vezes, é aquele onde acontece algo imprevisto ou onde o actor faz algo que eu ou a equipa técnica não esperaríamos e a câmara, o som e o boom têm de ir buscar ao que o actor fez naquele momento. Se me faz rir, também costuma ser um excelente take. Por vezes, estou tão agarrada à minha escrita que penso “isto não tem piada”, mas quando vejo no set, o take… percebo que é um bom take. Às vezes, gosto do improviso…
Porque o actor tem a capacidade de ir buscar aquilo que nem o autor percebeu que lá estava?
Os bons actores têm essa capacidade. Quando fiz o filme com o Ivo Canelas [Ao Telefone com Deus], ele tinha uma cena onde chamava pela melhor amiga, a égua, de cima de uma árvore. Ele pediu-me para o fazer de cabeça para baixo. Não era o que estava no guião, mas tenho essa abertura com os actores e achei que se adequava, já que o filme é tão absurdo. Deixei-o fazer, mas avisei-o: “não tenho seguro, não tenho dinheiro, não tenho orçamento. Se te partires todo, o azar é teu”.
Largar tudo e seguir o sonho
Realizadora e argumentista natural da Fuseta, no Algarve, Vera Casaca, 37 anos, é uma apaixonada pela literatura, pelos clássicos do realismo mágico e pela escrita policial. É também uma fã incondicional do humor.
Aliás, os seus dois filmes – Ao Telefone com Deus e Se Poirot Estivesse Aqui – vivem uma tórrida relação com o humor e com o surrealismo.
Doutorou- se em ciências na Alemanha, onde viveu durante anos, porém, como não se sentia realizada, aos 29 anos, após uma ponderada reflexão que durou dois anos, embalou a trouxa e zarpou para Nova Iorque para estudar Cinema.
Diz que não se arrepende da escolha e o sorriso com que fala da 7.ª Arte é um verdadeiro polígrafo, que nada esconde.
Como conseguiu que actores como Ivo Canelas ou Sara Matos colaborassem consigo?
Já conheciam o seu trabalho? Agora já conhecem. Mas antes, o Ao Telefone com Deus, onde entram, foi a minha primeira curta-metragem. É uma questão de abordagem. Temos de ser humildes e de dizer a verdade. Disse ao Canelas: “vai ser a minha primeira curta e não tenho experiência”. Ele sentiu muita força na escrita do guião, porque nunca tinha feito uma personagem deste género. Foi o guião que o convenceu e não o meu percurso, porque eu tinha chegado de Nova Iorque há meses. A única coisa que me exigiu foi o storyboard. Ele queria ter a certeza que eu tinha o filme na minha cabeça e que sabia como iríamos filmar. Passei três semanas a desenhá-lo. O meu pai desenhava muito bem e eu tive a sorte de também ter esse talento. Mas volto a dizer, foi o guião, foi fazer algo que ainda não tinha feito enquanto actor e foi a história. E a história é essencial.
Com base naquilo que tem visto noutros países, como os EUA, o que faz falta em Portugal para haver uma verdadeira indústria de cinema?
Não consumimos cinema português e a sensibilização tem de começar na escola, com os miúdos. Nós, os adultos, já vamos tarde. E, para as gerações Tik-tok, também é já difícil dar a volta. Se começarmos cedo o gosto pelo cinema português, e se começarmos a incutir o gosto de ouvir a nossa língua numa sala de cinema, conseguimos. Deveria haver também maior investimento na escrita, porque há uma falta de boas histórias para cinema. No caso da comédia, as de maior sucesso – não estou a falar das do César Monteiro -, pecam por falta de uma boa história. Não é por ser comédia que deve ser apenas uma colagem de sketches. Eles têm o seu valor, mas não sustentam uma longa-metragem de 90 ou 120 minutos. Também não sou contra o cinema de autor, mas deve haver uma maior democracia de género – 90% do financiamento do cinema português vai para cinema de autor que não é visto em Portugal. É para passar em Cannes ou na Berlinalle. Fiz várias candidaturas ao ICA e há um estigma em relação a outros géneros, quer seja comédia, horror ou algo mais comercial.
E a burocracia?
Adoramos burocracia. É Portugal, não há volta a dar. Nos outros países também são precisas autorizações e pagar taxas, mas há uma maior agilização dos processos. Em 2019, no Algarve, houve um enorme investimento em estúdios em Loulé. A cidade vai ter um grande tanque, como aquele onde se filmou o Titanic. Será o segundo na Europa. Penso que as obras estão a iniciar. Se esse investimento de milhões fosse em Lisboa ou nos arredores, teria tido uma grande cobertura nos media, mas como o Algarve só serve para ir de férias…
Quais são os realizadores e realizadoras que a inspiram?
Mais do que realizadores, são os filmes que me inspiram. Gosto muito da estética do Wes Anderson, que está associada a uma nostalgia da production design e gosto muito de filmes de época e desse sentimento nostálgico. Gosto das roupas, dos maneirismos e das máquinas de escrever. Gosto muito da escrita do Woody Allen, que também é realizador, e do seu estilo de comédia. Neste momento, estou a escrever um livro sobre 25 mulheres realizadoras, naturais do Líbano, Arábia Saudita, Rússia, entre outras nacionalidades, que, infelizmente, não têm tanta projecção quanto os homens realizadores. É o caso de Larisa Shepitko, uma das maiores realizadoras russas, que morreu bastante cedo e quase ninguém ouviu falar dela, ou Agnès Varda, mas essa tem mais referências, e há muitas mais que, nem sequer são faladas.