Vai estar em Leiria a apresentar a segunda edição do livro “Sistema Prisional Português – Toda a Verdade”. Que verdade podem os leitores encontrar nesta publicação?
É feito um relato, o mais detalhado possível, de tudo o que acontece nas cadeias, mas começamos pelo início, ou seja, pela investigação dos crimes, pelos julgamentos, e depois das condenações, por toda a vida de um recluso desde que entra na cadeia, até que sai, e como é que sai. E tudo está documentado.
Algumas destas revelações podem surpreender quem não conhece o sistema prisional?
Acho que sim. Normalmente, quando se ouve falar das cadeias, ouve-se falar em ideias pré-concebidas do tipo: “Isto não há fumo sem fogo, se eles lá estão é porque alguma coisa fizeram” e “aquilo é cama, mesa e roupa lavada”. Mas, em Portugal, em seis anos, cerca de 165 mil pessoas foram acusadas pelo Ministério Público e depois absolvidas, ou seja, mais de 75 pessoas por dia. E 20% destas pessoas passaram por prisões preventivas para depois serem absolvidas. Portanto, está provado que há muita gente que passa pela cadeia quando não deviar ter lá estado.
E quanto à ideia de “cama, mesa e roupa lavada”?
Quem conhece as cadeias portuguesas sabe que são medievais. Vamos falar, por exemplo, do Estabelecimento Prisional (EP) de Leiria. Celas onde devia estar uma pessoa estão duas, em camaratas com 10, 12 pessoas, instalações péssimas, uma mesma sanita. No EP de Lisboa, as celas têm os vidros todos partidos, estão cheias de todo o tipo de bichos e a água escorre pelas paredes. Nas celas com dois reclusos, como estão fechados 20 horas por dia, têm que fazer as necessidades em frente um do outro. Isto é a cama. Roupa lavada sim, porque entregam a roupa à visita para lavar. Quem não tem visitas, não tem roupa lavada. Quanto à mesa, o Estado entregou a alimentação a uma empresa de catering. E quanto paga por quatro refeições diárias, por recluso? Três euros e 20 cêntimos, o que dá 80 cêntimos por refeição. Não preciso dizer mais nada para se perceber como é a alimentação dos reclusos. Com a agravante que as famílias agora só podem levar um quilo de comida por semana, para obrigarem o recluso a comprar na cantina, que tem tudo, mas ao dobro do preço.
Voltando ao livro, a primeira edição foi lançada em finais de 2019. Os problemas retratados mantêm-se?
Mantêm-se e aumentaram. As infra-estruturas ficaram mais obsoletas e os quadros ficaram mais velhos. A vida dentro das cadeias é feita por forma a que os reclusos não levantem problemas. Para isso, as direcções dão ao recluso a possibilidade de ter televisão, rádio, playstation e ansiolíticos, para ficarem na cela sem chatear. Trabalhar ou estudar é que é mais complicado.
Essa estratégia revela falta de objectivos de reinserção, não?
Sim. Imagine um recluso condenado a dez anos de cadeia. O guarda abre a porta da cela às 8 da manhã, calmamente, para não o acordar. Vê se está vivo e encosta a porta, para ele poder ir ao pequeno-almoço e 90% das vezes não vai. Às 9 horas fecham a porta da cela, que voltam a abrir ao meio-dia para o almoço. Depois do almoço, o recluso vai duas horas ao pátio, janta, regressa à cela e fica a ver televisão até às 3 ou 4 da manhã. E são dez anos assim, nesta rotina. Quando sai, sem dinheiro e perspectivas de trabalho, ou tem uma família que lhe dá almoço e jantar, ou passa fome e vai roubar e volta para a cadeia. Portanto, é isto que o nosso sistema prisional proporciona. A nossa lei diz: a cadeia serve para reabilitar e punir, assim, por esta ordem. Só que ninguém se preocupa. Basta dizer isto, há 12.000 presos e há 20 psicólogos para as 49 cadeias. Por aí já se pode ver a atenção que o Estado dá à reabilitação. A cadeia é um armazém onde se colocam os criminosos pobres.
Mas há casos de sucesso, como por exemplo o projecto Ópera na prisão, desenvolvido em Leiria.
Pois há, mas são projectados por pessoas fora do sistema. Tenho uma admiração enorme pelo grupo que faz esse trabalho, mas não é da Direcção-Geral [de Reinserção e Serviços Prisionais].
No Reino Unido, o Governo decidiu libertar 1.700 reclusos antes do termo das suas penas, para reverter a sobrelotação das cadeias, que atingiu um novo recorde. Cá podia fazer-se o mesmo?
Nós somos um dos países mais seguros da Europa, o que tem maior número de presos per capita e onde as penas efectivamente cumpridas são as mais elevadas, porque ninguém quer tirar o recluso da cadeia. Se quisessem, podiam libertar amanhã 3.500 reclusos, sem qualquer problema. Em Portugal, 7,6% dos reclusos estão presos por homicídio e 7,8% estão presos por conduzir sem carta de condução. Claro que conduzir sem carta de condução deve ter uma punição, mas porquê a cadeia? Os homens vão dois ou três anos para a cadeia, desgraçam a família e saem da cadeia sem carta de condução. O que é que a APAR propõe? Trabalho comunitário, até tirar a carta: vai varrer ruas para a câmara, limpar matas, limpar as praias, lavar os carros dos bombeiros, lavar os carros da polícia ou colaborar num lar de idosos. Depois, temos umas centenas de reclusos em estado terminal, com cancro, com Alzheimer, com dificuldades de locomoção… e podiam estar em casa com pulseira electrónica ou num hospital. Se tirassem estas pessoas da cadeia, em vez de 12 mil presos, passávamos a ter oito mil. E porque é que não fazem isso? Porque ficavam com mais funcionários e guardas prisionais do que presos.
No entanto, os sindicatos da guarda prisional queixam-se, há vários anos, da falta de recursos humanos.
E têm razão. Faltam guardas, porque muitos estão de baixa. Depois, porque temos 49 cadeias e não tem lógica. Por exemplo, no Algarve, há três cadeias e todas têm mais guardas do que presos, porque uma cadeia nunca pode ter menos do que 150 guardas. Mas faltam guardas nas cadeias grandes.
Está na ordem do dia a fuga de cinco reclusos da prisão de Vale Judeus, em Alcoentre. Parece-lhe uma fuga bem planeada ou resultado de alegada negligência dos serviços prisionais?
Espero sinceramente que tenha sido negligência. Sou daqueles que dizem que a imensa maioria dos guardas prisionais é gente honesta, competetente e profissional, portanto nunca me atreveria a dizer que houve ali outra coisa que não a negligência. Os fugitivos são pessoas com muito dinheiro e não têm nada a perder.
O perfil do recluso mudou muito nos últimos anos. Que mudanças foram estas?
Ainda nos lembramos que antigamente muitos dos que iam para a cadeia era porque tinham tido problemas com os vizinhos. Agora há indivíduos muito inteligentes, com cursos superiores, conhecedores de várias áreas, que não estão preparados nem dispostos a aturar violações das leis internacionais. Tanto que Portugal, só este ano, já foi multado num milhão de euros pelo modo como trata os presos. Eles passam fome, não podem estudar, não podem trabalhar, quando trabalham recebem dois euros por dia, que é trabalho escravo, mesmo quando estão a trabalhar para empresas no exterior.
Há quem defenda que os reclusos deviam ter direito a ter telemóvel na cadeia. Qual a sua posição?
Eu também defendo. Telemóvel e computador com a acesso à internet e ao exterior. Como é que um indivíduo que quer estudar o faz sem computador? Como é que um indivíduo que era contabilista, por exemplo, que entrou na cadeia há 20 anos e sai agora sem saber nada de informática, vai voltar a exercer a profissão, se não conseguiu acompanhar a evolução?
Tem pedido também uma maior flexibilização das penas.
Sim, porque os juízes dão cada vez menos saídas precárias. Pela lei, qualquer indivíduo, quanto cumprir um quarto da pena, tem direito a ir a casa dois dias. Antes, os técnicos de reinserção social iam à terra, falavam com o presidente da junta, com o dono do café, com os vizinhos, para saber como foi o comportamento. Se correu tudo bem, o recluso ia tendo mais dias e, quando chegava ao meio da pena, davam-lhe a liberdade condicional. Esta era a melhor medida contra a reincidência. Neste momento, a maioria só sai da cadeia no fim da pena e por isso é que, em Portugal, 70% dos reclusos são reincidentes. E pior. Nas nossas cadeias, mais de 50% dos reclusos portugueses já são filhos de outros reclusos. Ou seja, quando falamos em reabilitação, reinserção ou reintegração, estamos todos a mentir, porque eles nunca estiveram integrados. Viveram sempre à margem da sociedade.
O anterior Governo anunciou a intenção de encerrar o Estabelecimento Prisional de Leiria e transferir os presos para a ex-Prisão Escola. Concorda?
Não acredito que isso vá para a frente, mas, para mim, quanto menos cadeias melhor.