Foi contemplada, no final do ano passado, com uma bolsa do Conselho Europeu de Investigação (ERC) no valor de 1,5 milhões de euros, para estudar a relação entre nutrição e fertilidade feminina. O que representa este prémio para si e para o trabalho que desenvolve?
Queria muito ter a minha própria equipa, o meu laboratório e começar a minha linha de investigação. Esta bolsa permitiu-se isso. Este prémio é atribuído para um projecto a cinco anos, com o financiamento a assegurar os salários da equipa e os encargos associados ao laboratório.
Já tem equipa constituída?
Comecei o laboratório oficialmente no início do ano, no Instituto de Medicina Molecular da Universidade de Lisboa. O processo passa agora por ter pessoas a concorrer. Já temos duas e estamos na fase de montagem de equipamento. Espero que, no final do ano, o projecto entre em velocidade cruzeiro. A investigação é um trabalho muito colaborativo, não só dentro da equipa, mas também com outros laboratórios, dentro do mesmo instituto, do País e do mundo. Não tem nada de individualismo.
A que perguntas vai procurar responder a investigação?
Os meus grandes interesses estão relacionados com a nutrição. Ou seja, como é que o nosso organismo metaboliza os nutrientes que obtemos com a dieta e de que forma é que isso impacta nas funções que o organismo tem de fazer. O nosso organismo é constituído por unidades mínimas, as células. Cada uma funciona como uma máquina, que tem de estar constantemente a trabalhar. Essas pequenas máquinas, que estão no coração, no cérebro, no fígado, têm funções diferentes, que são alimentadas pelos constituintes que obtemos do exterior, os nutrientes. Estes precisam de ser metabolizados e transformados noutros componentes para que as células possam funcionar. O organismo tem de coordenar todo o processo e transmitir à máquina central aquilo que o corpo precisa. Este é o foco da minha investigação, direccionado para a área da fertilidade e da reprodução. Vou procurar perceber como é que a nutrição impacta no metabolismo das células, mais concretamente das células que existem nos ovários, e como é que isso se transmite à reprodução de ovos e depois à fertilidade.
Já é possível correlacionar o impacto do que ingerimos na capacidade de reprodução?
Várias investigações, que usaram a mosca da fruta como animal modelo já fizeram uma correlacção directa entre o que comemos, em termos de constituição e de quantidade, com o output reprodutivo, ou seja, com a eficiência de reprodução da fêmea. Sabe-se já que uma dieta muito rica em proteína é favorável à fertilidade. Ou seja, conseguimos ter um output reprodutivo elevado e rápido. Mas isso tem um custo.
Qual é o custo?
Tem um custo ao nível da longevidade do organismo. Ao contrário, se tivermos uma dieta mais reduzida em proteína e com mais teor de carboidratos optimizamos a longevidade. O organismo vive mais tempo, mas reproduz-se menos. O organismo tem de escolher onde colocar os esforços em função dos objectivos e depois modula o que vai comer em função disso. Se deixarmos um animal escolher aleatoriamente, ele opta por comida que lhe permita um rácio nutricional que optimize a fertilidade ao longo da vida.
É possível que uma mulher com problemas de fertilidade melhore a sua eficiência reprodutiva através da alimentação?
É por aí que gostava de me encaminhar no futuro. Tenho discutido muito esta questão com pessoas que estão na área clínica da fertilidade. Do que já sabemos, isso faz sentido. No entanto, temos de compreender melhor o que se passa a nível celular, o que acontece quando adoptamos diferentes dietas e qual a melhor maneira de introduzir esses nutrientes e de melhorar a nutrição, quer por alimentos, quer por suplementos. Ainda sabemos muito pouco destes processos biológicos. Temos de ir semeado umas migalhinhas, aqui e acolá, para chegar a um caminho.
A base da sua investigação é mosca da fruta. Por quê esta escolha?
Cerca de 60% dos genes da mosca da fruta são iguais aqueles que existem em humanos. Muitos dos processos que conseguimos aprender nestes animais mais simples podemos depois transportá-los para seres mais complexos. Por exemplo, cerca de 75% dos genes que se sabe estarem associados a doenças em humanos também existem na mosca da fruta, o que é extraordinário. São animais muito fáceis de trabalhar em laboratório. Podemos modificá-los geneticamente com facilidade e utilizar neles muitas ferramentas, quer na parte da dieta quer na monitorização do comportamento. Pelo que, conseguimos avançar muito rapidamente nas descobertas iniciais.
Tem desenvolvido o seu percurso como investigadora sem sair do País. Como tem conseguido?
Desde que terminei o curso, sempre fui aconselhada a ir para fora. Por escolha pessoal não o fiz. Tinha um vínculo muito forte à família e não queria afastar-me. Decidi ficar e fui escolhendo centros de investigação de topo. Não saindo, queria ter as mesmas oportunidades. Quando vamos para o estrangeiro, alargamos a nossa rede de investigação e de contactos. Cientificamente, isso é muito favorável. É muito mais apelativo para as instituições recrutar alguém que vem de fora para dentro do que alguém que nunca saiu. Na altura, não tinha essa consciência. Fui fazendo as minhas escolhas dentro do que era importante para mim manter. Apesar da investigação ser a minha paixão e o que quero fazer na minha vida, há uma outra parte, a família, que também valorizo muito. Sempre tive a esperança de que ficando conseguiria fazer um bom trabalho e ter uma carreira apelativa para que, quando chegasse a hora, também eu fosse apelativa para as instituições portuguesas. E isso aconteceu. No ano passado, quando concorri para a bolsa candidatei-me a várias posições para começar o meu grupo de investigação em Portugal e lá fora. Fui convidada para entrevistas por todas as instituição estrangeiras. Significa que o nosso trabalho é muito valorizado lá fora.
Mais do que cá dentro?
Sim. Alguém que venha de fora, acaba por ser mais valorizado. Percebo as instituições. Este é um meio muito competitivo e ter alguém que possa trazer uma vertente de internacionalização é benéfico para os institutos científicos. Antes do resultado da bolsa, ponderei sair com a família. Com este tipo de financiamento, tornamo-nos mais apelativos.
Ainda é difícil fazer ciência em Portugal?
É muito, muito difícil fazer ciência em Portugal. O financiamento é pouquíssimo e as carreiras científicas são quase inexistentes. Há uma grande precariedade na ciência em Portugal. O trabalho é feito muito à base de bolsas e os contratos são poucos. Temos a Fundação para a Ciência e Tecnologia [FCT], que financia projectos de investigação e agora os contratos de emprego científico. É o mínimo. E, como o financiamento disponível é tão pouco, o processo torna-se altamente competitivo. Concorri por três anos consecutivos à FCT e não consegui ter um projecto aprovado, mas obtive uma [bolsa] ERC. Há tanta gente a concorrer e há tão pouco financiamento que, por muito bons que sejam os projectos, não há dinheiro suficiente. Além disso, as instituições não têm fundos para atribuir aos laboratórios. Neste momento, a maioria dos institutos científicos vive com fundos que não são nacionais. Tenho duas bolsas: uma vem dos EUA e outra da Comissão Europeia. O País apenas financia o meu salário, porque tenho um contrato de emprego científico. Em Portugal, os investigadores sempre se conseguiram adaptar e fazer muito com pouco. Mas torna-se bastante complicado.
Não há sintonia entre o discurso político, que enaltece a ciência, e a política de apoios.
Pois não. Falta uma visão completa, um plano concreto de como fazer funcionar a distribuição de financiamento. E depois há o problema da carreira científica, que está muito aquém do necessário, com vínculos precários e dependente de bolsas. Temos de andar sempre atrás de financiamento para podermos dar continuidade à investigação. Comecei agora este projecto, com a duração de cinco anos, e já tenho de começar a pensar no próximo, para poder prosseguir com a linha de investigação. A ciência é construída de pequenos passos. A vacina contra o vírus da Covid foi feita com conhecimentos adquiridos há décadas. Às vezes, os passos demoram mais tempo também porque não há financiamento para dar continuidade à investigação e podermos progredir mais rapidamente.
Os dados mais recentes indicam que a despesa em investigação e desenvolvimento em Portugal atingiu, em 2021, um novo valor máximo, chegando a 1,68% do PIB. O que representa este número?
Ainda é pouco e continuamos muito abaixo do que é recomendado. Percebo que não somos um País rico e que, como há pouco dinheiro, temos de o distribuir. Mas se pensarmos no que queremos e podemos fazer ao nível da ciência, com os investigadores de excelência que temos, percebemos que as verbas estão muito aquém. O mundo científico é muito complicado, porque estamos constantemente em competição por financiamento. Quanto mais produzirmos, mais financiamento conseguimos atrair.
Em alguns países, como os EUA, uma parte importante do financiamento à ciência já vem de privados.
Em Portugal estamos a dar passos nesse sentido. É disso exemplo a Fundação Champalimaud e o centro Botton, para o cancro do pâncreas. Mas ainda é pouco. Temos de intensificar o contacto entre a comunidade e mundo científico, para que as pessoas percebam a relevância do que fazemos e haja mais financiamento para desenvolvermos os projectos.
Em que momento percebeu que queria ser cientista?
Sempre fui muito curiosa. Foi isso que me levou ao curso de Biologia. Tornou-se óbvio que, com esta curiosidade, teria de seguir a carreira académica. Passo a vida a ir atrás da minha curiosidade e a responder a perguntas.