A mochila cheia de sacos de areia tem sido o equipamento obrigatório nos treinos das últimas semanas. É nela que terá que levar os mantimentos para os sete dias a correr 250 quilómetros pelo maior deserto do mundo, o Sarah.
A precisamente um mês da partida, na última sexta-feira, já se faziam contas à Maratona das Areias, mais uma das grandes aventuras da vida deste homem. “Não é a minha praia”, confessa de sorriso rasgado, enquanto contempla as prateleiras que enchem a parede da garagem com prémios e recordações do que têm sido os últimos 18 anos dedicados às corridas.
Com 65 anos e o conhecido bigode, Jorge Serrazina é um dos nomes mais acarinhados do trail da região e tem corrido o Mundo à procura dos melhores e mais bonitos desafios.
Director ténico da Cooperativa Agrícola da Benedita, de onde é natural, vive na Salgueirinha, em Óbidos, num terreno que comprou com sete amigos nos anos 80 para construírem “uma vida de partilha e companheirismo”. “Há até uma sala para o convívio onde bebemos ginja”, confidencia baixinho, enquanto mostra a casa da árvore que construiu para os netos e o campo de treino que o salvou em tempos de confinamento.
Preparado para ir correr 111 quilómetros do Trail de Conímbriga Terras de Sicó, e com os picos da Europa agendados para os próximos meses e uma prova de 900 quilómetros para o próximo ano, recorda aquela que tem sido a aventura que mudou tudo. E atira, sem se conseguir imaginar de outra forma: “Isto deu-me vida, sem dúvida”.
Só tinha feito meia dúzia de corridas nos tempos da juventude, até o vizinho e amigo António Mirante o desafiar a participar no arranque do Clube de Atletismo de Óbidos.
Aos 47 anos deixou-se de desculpas e embarcou no desafio, longe de sonhar que acabaria por abrir muitos trilhos na região e que seria o presidente do clube. Começou com umas corridas simples, depois provas de dezenas de quilómetros e rapidamente acelerou até às centenas.
Uma das mais ‘loucas’ foi a Transphyrenea , em 2016, da qual guarda a recordação em madeira com o seu nome e os 895 quilómetros gravados. Mas a essa juntam-se muitas outras pelo Mundo. Provas de superação que duram horas e muitas vezes se estendem por dias e semanas. “Dá para pensar em tudo”, confessa, com os olhos brilhantes, assumindo que “a principal competição é pessoal”.
Em menos de duas décadas já guardou histórias de uma vida que dariam para encher muitas páginas, como a única vez que cortou o bigode e fez “permuta” com o amigo leiriense João Colaço, a prova no Evareste, os trilhos que corre ao engano, o turismo que aproveita para fazer com a esposa São à boleia das provas ou a vez que marcou uma corrida na Patagónia para passar férias com a filha que andava a correr o Mundo de bicicleta com aquele que viria a ser o seu genro.
Mas tem, também, momentos desafiantes e mazelas que ficam para sempre como na “prova mais difícil de todas”, os 450 quilómetros dos Tor des Glaciers. A mala perdeu-se no aeroporto e teve que correr com equipamento emprestado o que acabou por se traduzir em dez quilos a menos, uma ruptura no duodeno e uma semana de internamento no hospital com vista para os alpes italianos que podia ter sido o fim da aventura.
“Foi quando decidi que, antes de parar, tinha que ir ao deserto”, conta o engenheiro-agrónomo.
A poucos meses de se reformar no emprego que assume há quase quatro décadas, garante que ainda lhe parece cedo para fazer o mesmo às sapatilhas de corrida. “Enquanto me der prazer e sentir que não ponho em risco a saúde vou continuar”, conta, “sem medo de desistir” e com a certeza de que “o importante é o desafio pessoal”.