Às primeiras horas da manhã, é grande o movimento no cais de embarque para as Berlengas, em Peniche. O bom tempo anunciado para o fim-de-semana é aproveitado por muitos para uma viagem à ilha, um dos ex-libris da região, com águas cristalinas, grutas, um forte secular e 79 hectares de paisagem granítica que serve de abrigo a espécies únicas.
A viagem, feita numa das embarcações turísticas a operar entre Peniche e a Berlenga, a única ilha do arquipélago que é visitável, decorre sem grandes sobressaltos. “Hoje, temos mar de senhora”, brinca um dos funcionários da empresa, recorrendo a uma expressão usada pelos pescadores para se referirem à fraca ondulação. Quarenta e cinco minutos depois, terra à vista.
A Berlenga apresenta-se em todo o seu esplendor, banhada pelo sol quente que se fez sentir no último sábado. No cais, aglomeram-se dezenas de pessoas acabadas de chegar, umas à espera de se fazerem, de novo, ao mar, para visitar as grutas que ladeiam a ilha, outras a fazerem-se ao caminho, em direcção ao trilho que as levará ao forte de São João Baptista, construído no século XVII, que hoje é usado também como alojamento. Pelo caminho, o trilho faz ligação ao farol, erigido entre 1839 e 1841.
A meia encosta, apresenta-se o bairro dos pescadores. O casario é composto por três fileiras de imóveis, de um só piso, mandado erguer por volta de 1940 pelo comandante Andrade da Silva, que então chefiava o Porto de Peniche e que se encantou pelas Berlengas. “Mandou construir uma casa para si, que ainda hoje se encontra nas mãos da sua família, que todos os anos passa o Verão na Berlenga”, pode ler-se no site www.berlengas.org. Mas, a função primordial do bairro era e é a de dar abrigo aos pescadores que, até então, se recolhiam nas grutas espalhadas ao longo das rochas.
Seguimos contra a corrente. Enquanto os visitantes prosseguem caminho pelos trilhos que conduzem às principais atracções da ilha, rumamos ao bairro, onde reina a tranquilidade e os grelhadores vão sendo preparados, a pensar na hora de almoço, que se aproxima.
Sentados no muro que separa o casario da zona onde fica o restaurante e o bar Castelinho, os pescadores trocam dois dedos de conversa, entre um cigarro e uma cerveja, aproveitando para descansar. O dia começou umas horas antes, com a primeira saída para a pesca – a segunda há-se ser ao final da tarde -, pesca que aqui se faz apenas à cana, lançada a partir de embarcações, ou com palangres, linhas ao longo das quais são espalhados anzóis, à espera de carapau, dourada, pargo, sargo, abrótea, corvina e robalo, as principais espécies capturadas na Berlenga.
Em dias de sorte, pode haver alguma lagosta a morder o anzol, conta Fábio Glória, de 39 anos, um dos pescadores mais jovens do bairro, que tem uma embarcação onde trabalha com mais dois homens que, este ano, já apanharam uma lagosta com 3,3 quilos. “Deu para o combustível da viagem, que fica à volta de 70 euros. Três ou quatro dias de pesca, ficam em 250 euros. Se não apanharmos peixe, é um grande penalti.”
“Não há liberdade como esta”
Filho e neto de pescador, Fábio fintou o projecto do pai de o afastar, a ele e aos irmãos, do mar, quando, em 2009, trocou o trabalho nas obras pela pesca nas Berlengas. “Não há liberdade como esta. E dá para viver, ter casa, carro e sustentar a família. Há meses complicados. Quando se ganha bem, poupa-se para os meses mais parados”, diz, convicto que esta será a vida que levará “até ao fim”.
É, sobretudo, entre Março e Dezembro, que os pescadores da Berlenga fazem da ilha e do bairro a sua casa. Vão “a terra”, que é como quem diz a Peniche, pelo menos à segunda-feira, vender o peixe na lota e visitar a família. Se o fim-de-semana rendeu bem, podem ficar mais um dia ou dois. Se não, “volta-se no mesmo dia, para tentar a sorte”, conta Rui Filipe, mais conhecido como “Seabra”, alcunha que herdou do pai e do avô e com a qual baptizou a lancha com que pesca em redor do arquipélago.
Prestes a completar 43 anos como pescador – “comecei com 16 anos, mas aos seis já ia com o meu avô lançar a cana na praia” –, Rui é um dos moradores mais antigos do bairro. Depois de alguns anos a pernoitar num quarto cedido por outros residentes, em 2009 conseguiu que lhe fosse atribuída uma casa, quando os anteriores ocupantes, já idosos, saíram. “Há sempre mais candidatos do que casas”, assinala o pescador.
Ao todo, são 20 habitações, oito ocupadas por pescadores, três por funcionários da câmara e outras três pelas empresas turísticas que operam na ilha. As restantes pertencem a particulares. A separar a zona dos pescadores, que pagam uma renda mensal de 50 euros por oito metros quadrados de casa, e as habitações dos particulares existe um muro, uma barreira física esbatida pelo convívio entre uns e outros, assegura Rui Filipe.
Exemplo do que diz foi o que aconteceu no último sábado quando, à volta da mesa instalada entre a sua casa e o posto que os bombeiros de Peniche têm na Berlenga, juntou vários pescadores, alguns familiares de visita à ilha e Ricardo Fernandes e a mulher, que vivem em Lisboa e que têm casa no lado privado do bairro.
O desafio da gestão da água
“Vim para as Berlengas com 20 meses, ainda na alcofa. Viemos sempre que podemos. Dá trabalho, porque temos de trazer tudo, e a vivência na ilha requer algum espírito de privação, altamente compensado pela liberdade que sentimos e pelo contacto com a natureza, que nos permite desconexar”, confidencia Ricardo Fernandes, que aponta a gestão da água como um dos desafios de viver na ilha.
Funcionário camarário, Nuno Henriques, mais conhecido por ‘Mimi’, explica que o abastecimento de água é assegurado por uma dessalinizadora, que produz entre 300 a 400 litros de água doce por hora, distribuída em três torneiras no bairro, ao restaurante, ao bar e às casas afectas aos trabalhadores da câmara. Em caso de necessidade, “vem água de barco”. Nos sanitários públicos, também usados pelos pescadores que residem no bairro, já que as habitações não têm casa-de-banho, é utilizada água salgada.
Além de assegurar que não há falhas no abastecimento, Nuno Henriques e Rui Mota, o outro funcionário da câmara afecto à Berlenga, são responsáveis pelo serviço de lixo, que é depositado em contentores junto ao cais, transportados para Peniche num barco fretado pela autarquia. “Em Agosto, o barco vem duas ou três vezes por semana. Nos outros meses, uma vez por semana”, avançam os trabalhadores, que têm também a missão de fazer a manutenção do bairro e dos espaços públicos, nomeadamente, do cais que, quase todos os invernos, sofre ‘maus-tratos’ infligidos pelo mar. “Este ano, o mar até foi meiguinho, Mas, há sempre arranjos a fazer”, afiança Rui Mota, frisando que, “para trabalhar na Berlenga, tem de se gostar”. Caso contrário, torna-se “um martírio”.
O mesmo diz Toni Branco, de 43 anos, ligado à ilha quase desde sempre, já que o avô era pescador e os tios exploraram, durante vários anos, o único restaurante da Berlenga, cujo edifício e envolvente foram requalificados já no actual mandato autárquico.
Com 13 anos, Toni fez uma formação como “animador ambiental” dada pelo Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas e, durante vários anos, colaborou como voluntário na reconstrução de trilhos e na sensibilização dos turistas para a preservação do espaço. A pesca veio depois e entranhou-se, de tal forma, que hoje considera a Berlenga como a sua casa, regressando a terra apenas as vezes indispensáveis. É por isso que sente alguma tristeza pela forma como o local tem evoluído, muito focada no turismo, “ignorando que a Berlenga foi, é e sempre será um abrigo de pescadores”. Toni Branco reconhece, no entanto, que há hoje maior cuidado com a presença de turistas, limitada a 550 visitantes por dia, lembrando o tempo em que “havia tendas e pessoas por todo lado”, antes da classificação com reserva natural.
Mas se a beleza da ilha está acessível a todos aqueles que a visitam e que, desde 2022, são obrigados a registarem-se na plataforma online Berlengas.Pass, há momentos que apenas quem pernoita na ilha pode vivenciar, sobretudo, a partir da uma hora da manhã quando a electricidade é desligada, com as estrelas a apresentarem-se em todo o seu esplendor.
“A noite aqui é espectacular. É também o momento em que as aves noctívagas saem dos abrigos e se deixam observar e se fazem ouvir. É um cenário do caneco”, enfatiza Toni Branco. “Não há outro lugar igual”, acrescenta Rui Filipe, enquanto vira o sarrajão, peixe da família do atum, e os carapaus, que pescou horas antes e que serão servidos ao almoço, juntamente com sardinhas vindas de Peniche, com uma vista privilegiada sob o oceano. “Há lá coisa melhor do que esta?”, pergunta, em jeito de afirmação, com um sorrido rasgado.
No bairro reside cerca uma dezena de pescadores, que aí vivem grande parte do ano; As casas são pertença do Município de Peniche, a quem os pescadores pagam renda mensal de 50 euros; O convívio entre quem vive e trabalha na ilha é uma constante e faz desta comunidade “uma família”