Leia aqui a segunda parte da entrevista
43 anos de serviço público. Como é deixar a Pediatria 31 anos depois?
Depois de três décadas no hospital de Leiria e um quarto de século como director de serviço de Pediatria não seria correcto se não dissesse que ainda existe um pensamento virado para aquilo que poderia ser o serviço de Pediatria e aquilo que era a política da qualidade e segurança e humanização do Centro Hospitalar de Leiria [CHL], que ajudei a incrementar. Sempre procurei uma evolução para o serviço, nomeadamente aquele que presta cuidados às crianças e aos pais, garantindo que os profissionais de saúde tenham uma compaixão mais vincada, porque devem estar sempre ao lado de quem está de algum modo fragilizado. Ainda estou na fase de cortar o cordão umbilical. Tenho uma vida preenchida. Vou continuar a estudar e esta é uma vantagem da aposentação: temos mais tempo para nós e para gerir melhor o tempo.
Quais os marcos conquistados no CHL que o deixam orgulhoso?
Fizemos muita coisa. As coisas nunca aconteceram sozinhas. Devemos falar mais no nós e não nos eus. Para as coisas acontecerem tem de ser com um conjunto de pessoas que estejam de algum modo imbuídas do mesmo tipo de vontade. O primeiro marco foi a criação do serviço de neonatologia. Essa foi uma mudança radical, da qual muito me orgulho. Os bebés passaram a morrer menos e a ter maior qualidade de vida. Aquilo que faz parte do nosso ADN não é só contribuir para a sobrevivência, mas para a qualidade de vida dessas crianças. Diminuímos claramente o número de crianças que ficaram com paralisia cerebral ou alterações do seu desenvolvimento psicomotor, por exemplo.
O que o fez trocar o Pediátrico de Coimbra pelo hospital velho de Leiria?
O novo hospital já estava adjudicado. Eu e mais outros três pediatras que estavam comigo em Coimbra constituímos uma equipa, que decidiu de imediato construir um serviço de Pediatria com alguma qualidade. Hoje pode parecer estranho, mas fomos os quatro que começámos a garantir o apoio às crianças 24 sobre 24 horas. Foi uma decisão um bocado louca, porque prejudicámos muito a nossa vida pessoal e familiar. Os colegas que trabalham com os partos começaram a aperceber-se que quando nascia um bebé prematuro tínhamos uma formação da nova geração de pediatras diferente, com um espírito de missão. Aos poucos fomos melhorando as condições daquilo a que se chamava de serviço de Pediatria. Havia muitas carências de espaço e de conforto e praticamente não havia equipamentos para monitorizar as crianças. Começámos a formar enfermeiros para trabalhar na área da neonatologia e depois é uma mancha de óleo. Criámos uma estrutura dentro do serviço de Pediatria que garantiu que as pessoas continuassem a gostar de aprender, tivessem sentido crítico, fossem disciplinados e tivessem pensamento lógico. Em Medicina é muito importante ter um pensamento lógico, porque as grandes falhas na Medicina não têm a ver com o não saber, mas com a falta de organização e disciplina. [LER_MAIS]Tive ainda o privilégio de me indicarem para participar na revisão do projecto do novo hospital de Leiria, agora chamado hospital de Santo André. Construímos o serviço de Pediatria de acordo com aquilo que idealizava ser um serviço para o século XXI. Na altura, não havia um serviço nem um internamento dedicado às crianças. Não havia quartos para os pais, não havia urgência pediátrica nem uma consulta externa. Criámos condições para os pais terem algum conforto, mas hoje criava quartos para internamento conjunto das crianças com um dos pais. O serviço de urgência pediátrico foi o primeiro serviço do País a ter uma certificação de qualidade.
Também liderou esse processo.
Por estranho que pareça, os médicos não abordam as questões da qualidade na sua formação e isso permitiria evitar os erros e trabalhar com qualidade. Quando começámos com a qualidade na urgência pediátrica sabia-se pouco. Conseguimos desenhar um padrão de normas que uma urgência pediátrica deveria ter. Depois, estas normas foram aprovadas a nível europeu para atribuição de certificações de qualidade às urgências pediátricas europeias. Acreditámos o hospital de Santo André pela Joint Commission International e estendemos isso aos outros hospitais do CHL, o que foi outra loucura que cometi, mas foi uma aposta ganha. Se não tivesse sido feita essa acreditação os hospitais de Pombal e Alcobaça não teriam tido a evolução que tiveram. As pessoas hoje notam uma grande diferença em relação à forma como são tratadas. Enganamo-nos muito pouco ou quase nada. Amputar a perna errada ou tirar o rim direito quando era o esquerdo é uma hipótese de 50%. Há um controlo no medicamento, evitando dar o medicamento à pessoa errada ou a dose incorrecta. A qualidade foi uma mudança que me deu um prazer enorme. Tenho imensa pena que nunca nenhum governo tenha valorizado a acreditação dos hospitais. As pessoas não têm a mínima ideia dos ganhos em saúde que um processo destes tem. Se o CHL não continuar com a certificação falhei redondamente.
Houve alguma coisa que não tenha conseguido fazer?
Considero-me uma pessoa e um profissional realizado. O hospital criou um centro de investigação, mas o problema é a disponibilidade dos profissionais para fazer investigação. Já não estamos a falar de investigação pura e dura, de estar a trabalhar com o ratinho, mas de investigação clínica. As pessoas que mandam na saúde não têm noção – ou se têm não conseguem criar condições para isso – que quanto mais se investigar, melhor tratamos os doentes. Poupamos em exames complementares, em dias de internamento, em sequelas e em co-morbilidades.
As urgências são um dos problemas dos hospitais.
As urgências são um pandemónio. Não estamos organizados e a parte da tutela não toma decisões políticas porque não quer. Todos os países europeus reduziram em 50% ou em dois terços o número de pessoas que vai a uma urgência. A principal preocupação de quem trabalha nos hospitais são os doentes que têm situações graves e que podem ficar muito prejudicados, porque os profissionais de saúde, nomeadamente os médicos, estão mentalmente e fisicamente esgotados. Há um excesso recurso indiscriminado ao serviço de urgência, mas as pessoas também não têm culpa porque não há alternativa. Ainda me atormenta ver colegas pediatras com cerca de 50 anos a chorar na passagem de turno da urgência, porque estão completamente esgotados. Depois vêm dizer que Portugal é o terceiro país da Europa em número de médicos, mas onde é que eles estão? É evidente que não se criam as condições para os médicos, que são muito mal remunerados. Um professor ganha muito mais do que um médico no topo da carreira Não estou a dizer que os professores ganham muito. Trabalhei 43 anos, fui director de serviço durante 25 anos, atingi o topo da carreira e ganho menos do que os meus familiares professores. Também há um aspecto muito importante: o género dos profissionais de saúde. Temos um índice de fecundidade dos mais baixos do mundo e qual é o sexo dos enfermeiros? 90/95% são mulheres. Nos médicos, pelo menos, 85% são mulheres. Os jovens médicos andam anos a estudar e quando tiram a sua especialidade têm de aguardar para concorrer. As mulheres vão adiando a maternidade e quando começam a trabalhar como especialistas, engravidam. O número de recursos humanos não tem isto em conta. Em Leiria, se tivermos uma pediatra que engravide ficamos sem uma especialista durante um ano. Quem é que a substitui? Quem é que assume os lugares de urgência que funciona 24 sobre 24 horas? As equipas são diminutas. Os centros de saúde devem estar abertos ao fim-de-semana? Passa por terem horários alargados e não precisaria de ser 24 horas por dia. Basta um horário até às 23 horas. Se a pessoa fosse ao hospital, seria encaminhada para os centros de saúde, que também poderiam ter um electrocardiógrafo e fazer análises rápidas. Seria um factor de motivação dos colegas dos cuidados primários, que são fundamentais em qualquer estrutura de saúde. É o médico de família que conhece o doente. No hospital é uma relação anónima. E relações anónimas não são nada boas para relações entre médico e doente.
Com a chegada do Inverno surgem as doenças respiratórias, sobretudo nas crianças. Como vai ser possível gerir a Covid-19?
Também não sei como vão fazer quando uma criança aparecer com febre. Como vamos separar os vírus uns dos outros? Os sintomas são iguais. Vamos fazer testes a todos? Vão ficar duas semanas em casa cada vez que estiverem constipados? Se estiverem na mesma sala de aula mandam-se todos para casa? Isto não é fácil. Embora haja trabalhos contraditórios, as crianças são muito pouco contagiadas, pouco contagiosas e quando têm teste positivo raramente estão doentes. No pósconfinamento, houve países que a primeira coisa que abriram foram as escolas. Sou totalmente a favor de que as crianças voltem à escola. Fazer um teste vale o que vale. Podemos fazer o teste hoje e estar negativo e amanhã fazer de novo e estar positivo. Estou a estudar precisamente o caso de uma criança, que deu primeiro negativo, depois testou positivo e mantém o positivo há dois meses, sem qualquer sintoma. Nestes casos, a criança fica confinada, não a deixam sair de casa e não a vão deixar ir à escola. Os testes que se fazem detectam as partículas dos vírus. Essas crianças são contagiosas? Têm maior risco para os adultos?
Ainda recorda a primeira criança que lhe morreu nos braços?
Felizmente morreram-me poucas crianças. Trabalhei em cuidados intensivos durante vários anos em Coimbra, mas também tive muita sorte. Houve uma ou outra, crianças que não tinham futuro. Houve uma criança que ainda hoje… não posso falar dela.
A morte é a parte mais difícil de ser médico?
O mais difícil de ser médico é continuarmos a manter-nos todos os dias actualizados, saber lidar com o sofrimento das crianças e dos pais e não levar para casa esta angústia de sermos incapazes de conseguir resolver todos os problemas. Claro que podemos sempre ajudar, mesmo que não haja futuro. Aquilo que é mais importante é tocar nas pessoas. As crianças precisam que façamos festinhas, precisam muito do contacto físico.
Como é que as crianças ainda o surpreendem?
As crianças surpreendem-me todos os dias. Por exemplo, um miúdo com quatro anos que sabie o nome das capitais todas dos países do mundo e as bandeiras. Numa avaliação à visão, pedi a uma criança que ia entrar para o 1.º ciclo para me dizer os números de uma tabela. Ele não dizia nada e depois de insistir ele responde: 9 milhões 400 e… Leu o número todo. Crianças pequenas que um ano depois apercebem- se que mudei de estetoscópio ou que tenho brinquedos novos. Ou um jovem de 16 anos a quem perguntava: ‘então como estás, sentes-te bem?’ E ele responde: ‘Sim, tudo bem. dr. pergunta sempre por mim, mas e o dr. como é que vai? Como é que se sente? Sente-se bem?’.Tenho de me surpreender com isto.