Ana Moutinho, jovem médica de 32 anos, desabafou na sua página de facebook o que sentiu num dos três dias da greve dos médicos em que optou por trabalhar. As suas palavras escritas com sentimento levaram a que uma amiga pedisse para partilhar e a partir. Ao tornar público o texto, rapidamente o seu testemunho se tornou viral.
Às 17:28 horas de hoje, quinta-feira, o texto escrito no dia 8, tinha 1173 partilhas e cerca de três mil likes.
“Apesar de ser a favor das reivindicações desta greve, naquele dia optei por não fazer. Ao final do dia senti-me frustrada, porque constatei que as as razões pelas quais não fiz greve eram precisamente as justificações que estão por detrás desta greve. Não fiz greve, porque não tenho vagas para os meus utentes. Se não fosse trabalhar, não conseguiria remarcar as consultas. Foi por isso que cheguei a casa e fiz este desabafo”, revela ao JORNAL DE LEIRIA, Ana Moutinho, médica na Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados (UCSP) Dr. Arnaldo Sampaio, em Leiria.
A clínica afirma que estão a “aproveitar muito mal o corpo clínico do Serviço Nacional de Saúde” (SNS) e “são pessoas novas cheias de ideias e com vontade de abraçar e vestir a camisola do SNS”.
“Temos muitos entraves no dia-a-dia. Os utentes são números. Só importa se fazemos o número de consultas previstos, mas não se preocupam se os utentes foram vistos com qualidade. O que interessa ter médico de família atribuído a todos os portugueses, se o médico depois não tem tempo nem vagas para ver os utentes?”, questiona Ana Moutinho.
A especialista sublinha que “é impossível ver os utentes no tempo de consulta estipulado e com os ficheiros que temos”. Segundo a médica, se fossem dadas condições aos profissionais, os resultados seriam muito melhores. “Vale a pena dar valor ao SNS, que é um exemplo de serviço.”
“O que noto em mim e me entristece é que médicos jovens, que ainda não têm muitos anos de trabalho já se sintam cansados, frustrados e derrotados. Eu sou especialista de Medicina Geral e Familiar porque era mesmo o que queria”, lamenta Ana Moutinho.
Eis o desabafo de Ana Moutinho:
Hoje entrei as 7h59 no centro de saúde onde trabalho, piquei o ponto na máquina mais ridícula que jamais se colocou em serviços de saúde (serviços que deveriam ser de pessoas e para pessoas, humanizados e adaptados à realidade das pessoas, que muda diariamente). Uma máquina que não se importa que eu faça 2h a mais a ver consultas extra (porque diz que só as fiz porque quis) mas me faz passar a humilhação de estar ao dela contar os segundos que faltam para a minha hora de saída quando o meu ultimo utente ligou a dizer que não podia vir e a sala de espera está vazia. Uma máquina onde tenho de registar a minha impressão digital a horas certas no intervalo do almoço mesmo quando não o tive… “desculpe interrompê-lo Sr Joaquim, vou só lá baixo picar o ponto e volto para continuarmos a consulta, é que já são 14h05 e eu tinha de picar as 14h”.
Entrei no meu gabinete e senti-me envergonhada porque vi os outros gabinetes vazios e as noticias cheias de números expressivos de uma greve tão cheia de razão e de razões. Razões pelas quais me debato diariamente, motivos que me indignam e degradam a minha profissão. Sentei-me à minha secretária envergonhada por não fazer parte desses números, desse grupo de colegas que estão a tentar, com esta forma de luta, mostrar o que está tão errado no nosso dia-a-dia.
Hoje não fiz greve porque no meu agendamento tinha crianças, grávidas, diabéticos… pessoas que precisam desta consulta, hoje ou pelo menos nos próximos dias, e eu não conseguia garantir-lhes esse atendimento. Porquê? Porque não tenho vagas nos próximos 2 meses. Porquê? Porquê tenho uma lista de 1900 utentes o que torna impossível, leia-se completamente impossível, prestar cuidados atempados e uma acessibilidade decente.
Esta é uma das reivindicações desta greve e aquela que me diz mais.
Faço o que gosto, tenho um brio e um orgulho enorme na minha profissão, escolhi a especialidade que queria, visto a camisola e defendo o SNS com garra. Mas vejo tudo a desmoronar-se à minha volta. Vejo falta de condições, de material (não tenho luvas descartáveis!!!), de pessoal (não temos secretários suficientes, onde devia haver pelos menos 5, temos 2…). Vejo os meus colegas desmotivados, tanto os que têm 30 anos de serviço como os que, como eu, andam nisto há menos de 10 anos.
Os utentes reclamam, com razão mas com muito desconhecimento.
“Estava a ver que nunca mais me chamava!”. Chamei 20 min depois da hora marcada. Porquê? Porque me obrigam a ter 15 min por utente e esse é o tempo que demoram algumas pessoas de 80 anos a sentar-se e a tirar o casaco para medir a tensão, porque sou médica de família e na consulta da mãe ainda ausculto o filho que anda com tosse, porque entre os 5-6 programas informáticos com que tenho de trabalhar simultaneamente, há sempre um que está empanado. Porque para tudo neste país é preciso mais um papel do médico… Porque sou humana e hoje, pelas 13h30, pude finalmente ir ao WC…
E não, não temos o ordenado médio de 3000 e tal euros que apareceu hoje na TVI.
E não, não achamos engraçado marcar consultas com meses de espera ou ver as pessoas na urgência horas depois – simplesmente estamos 10 a fazer o trabalho de 20.
E não, não vamos de férias para as Caraíbas à pala de laboratórios – quando consigo que me ajudem para fazer um curso ou uma formação fico toda contente!
E sim, o governo prefere contratar médicos indiferenciados de empresas a preço de ouro do que abrir concursos atempadamente para quem quer trabalhar no SNS e acabou a especialidade.
E sim, o governo regozija-se de ter 90% da população com médico de família mas não diz que ter médico de família atribuído não significa ter acessibilidade a uma consulta com ele.
Hoje não fiz greve pelos meus utentes.
Amanhã faço greve pelos meus utentes.
A greve nacional de médicos teve início às 00:01 horas de terça-feira, dia e termina às 23:59 horas de hoje, dia 10, uma paralisação que os sindicatos consideram ser pela "defesa do Serviço Nacional de Saúde".
A reivindicação essencial para esta greve de três dias é "a defesa do SNS" e o respeito pela dignidade da profissão médica, segundo os dois sindicatos que convocaram a paralisação.
Segundo a Agência Lusa, em termos concretos, os sindicatos querem uma redução do trabalho suplementar de 200 para 150 horas anuais, uma diminuição progressiva até 12 horas semanais de trabalho em urgência e uma diminuição gradual das listas de utentes dos médicos de família até 1500 utentes, quando actualmente são de cerca de 1900 doentes.
Entre os motivos da greve estão ainda a revisão das carreiras médicas e respectivas grelhas salariais, o descongelamento da progressão da carreira médica e a criação de um estatuto profissional de desgaste rápido e de risco e penosidade acrescidos, com a diminuição da idade da reforma.