Inferno Custa muito saber que estás aí a sofrer. Saber que podes morrer de um momento para o outro. Como é que se consegue viver sabendo que se pode morrer de um momento para o outro? Bom, todos podemos morrer de um momento para o outro. Sem aviso. Mas acho que ninguém suportaria ser avisado, não é? Como consegues? Aí, entre o sufoco provocado pelo céu sem fim e pela terra sem fundo. Enquanto esperas, nos intervalos da guerra, será que brincas? Como serão as tuas brincadeiras?
É triste que uma mãe não saiba que brincadeiras tem o seu filho. Que disparates diz. Que disparates pensa. Que disparates sente. Tenho saudades dos teus disparates. Olha. É preciso ir morrendo devagar, porque assim não se pensa muito na morte. Uma pessoa distrai-se. Acaba por andar entretida com outros assuntos. Uma pessoa tem fome e pensa em comer um bife ou assim. É espantoso, não achas? Estamos a morrer, mas pensamos em comer. Pensamos em outras coisas, daquelas que uma mãe não consegue falar com um filho.
Que coisas te diria se fosses minha filha? Seria capaz de te falar de outra maneira, sobre outros assuntos? Que estranho que não vejamos cada pessoa como uma individualidade, mas sempre como fazendo parte de algo; de um género; de uma geração. Não vemos a pessoa, vemos uma condição. E a minha condição é a de mãe. É apenas assim que me vês? Tens comido bem? Aí há bifes? Não tenho tido fome.
Desde o funeral que não como nada. Sabes que o funeral foi ontem. E desde ontem que não como. Não me ralhes. Ou ralha. É bonito quando um filho ralha à mãe. Revela amor. As mães são umas parvas, vêem amor em todo o lado. Foi muito triste, o funeral. Uma rapariga tão nova. Sabes que nunca morri de amores por ela. Ai, desculpa. Que estupidez a minha. Dizer que nunca morri de amores por uma rapariga que acabou de morrer.
Às vezes pareço insensível. Mas não sou. Sabes que não sou. Acreditas que passei o funeral a chorar? Pobre rapariga. Foi a moça que escolheste para ser tua namorada, talvez para ser a mãe dos teus filhos. Como poderia não chorar com a sua morte? E que morte absurda. Morrer assim atropelada por um autocarro. Puta de vida. Existe algum sentido nisto? Uma rapariga tão nova sai de casa para ir comprar fruta e morre atropelada.
Deus é um palhaço. Deus brinca connosco. Goza connosco. Faz-nos sofrer, oferece-nos ilusões, manda-nos autocarros para cima. Mata-nos sem aviso. Será que se ri de nós? Como será o riso de Deus? Como podemos acreditar na existência de um deus se não lhe conhecemos o riso? E os meus netos? O que lhes acontecerá, agora que já não irão nascer? Irão pairar no mundo das possibilidades para todo o sempre? Talvez seja isso o inferno: ser mera possibilidade, nunca haver concretização.
(Excerto da peça Diário de Quem Ficou. Estreia em 23 de Fevereiro – Black Box Leiria –, com encenação de Cátia Ribeiro)