“Formou o Senhor Deus o Homem do pó da terra, e soprou-lhe nas narinas o fôlego da vida”; (Génesis 2:7). Numa terra no meio do pinhal entre Leiria e o mar Atlântico, o Homem criou o vidro da areia da terra e soprou-lhe o fôlego da criatividade. E o Homem viu que era boa aquela arte e criou uma cidade para lhe dar um lar. Assim nasceu a Marinha Grande.
Para celebrar as pessoas que marcaram e marcam a vida da cidade e do concelho, acontece, por estes dias e até ao dia 13, o Sopro – Festival de Arte Pública.
Em três intervenções artísticas assinadas por Ricardo Romero, Nuno Viegas e Robot, o certame que é organizado em parceria pela Câmara da Marinha Grande e pela Associação Riscas Vadias, que também assume a curadoria, homenageia os vidreiros, os bombeiros e os artistas, neste caso, um criador marinhense em específico, Joaquim Correia, num diálogo que se entabula entre o território e as pessoas.
“Esta é uma cidade muito recente, com 250 anos de uma história que coincide com a chegada de Guilherme Stephens e com a fundação da fábrica de vidro, em torno da qual se deu o seu desenvolvimento. A nossa abordagem foi a importância que o vidro teve para o desenvolvimento da cidade. Optámos por homenagear certos sectores que foram fundamentais para o desenvolvimento do concelho”, explica Ricardo Romero, da Riscas Vadias.
A pintar nas alturas, encontramo-lo acompanhado por Nuno Viegas, sob o olhar curioso de uma plateia de antigos vidreiros e reformados dos moldes, que assistem ao desenhar de faces anónimas, que vão fluindo dos pincéis e latas de spray dos artistas, para a parede que serve como tela. As peças criadas no âmbito do Sopro colocam em evidência um “diálogo” activo entre os artistas convidados e Ricardo Romero.
O grosso da peça é do primeiro, mas há uma materialização de um apontamento do segundo. Assim se explica a presença de animais nas três intervenções. “O que levou a fábrica a ser instalada foi o pinhal, utilizado como fonte de combustível. Nesta primeira edição, além de [LER_MAIS]homenagearmos as pessoas quisemos que esse lado natural ficasse patente, através da representação dos seres que habitam a mata.”
Romero adianta que faz todo o sentido recordálos, especialmente agora, após o fogo ter reduzido o Pinhal de Leiria/Pinhal do Rei a cinza. Junto à esquadra da PSP, na urbanização do Casal do Malta, o mural está quase completo com a reprodução de uma antiga fotografia de vidreiros que sopram vidro. Na ponta da cana, ganha forma e vida um pássaro. A grande pintura está a ser criada recorrendo a uma técnica nova desenvolvida por Romero e conta com o contributo do estilo e traço contemporâneo de Nuno Viegas.
Quando estiver concluída haverá um par de mãos que sai da parede para segurar a imagem. Ali perto, está já concluído o mural criado na torre dos bombeiros voluntários. Nela, uma bombeira anónima, que representa todos os soldados da paz e em especial os do concelho, segura um pequeno coelho.
A última peça a ser concluída é uma escultura da autoria de Romero. Nela, homenageia Joaquim Correia, artista plástico natural da Marinha Grande, que este ano faria 100 anos. A obra foi concebida para ficar nas traseiras do Teatro Stephens, numa zona elevada, aos olhos do público. Antes de ser levada para o seu “pedestal”, ficará em exposição em espaço público, durante duas semanas.
No seu ombro, terá a companhia de um pequeno esquilo-vermelho. “É uma figura humana, com cerca de três metros, que reinterpreta uma peça original de Joaquim Correia, que representa um vidreiro, colocada numa rotunda na Vieira”, explica. É a primeira grande escultura figurativa humana a que dá forma. É, de certo modo, mais uma estreia numa nova vertente do seu trabalho.
Origens e identidade
A escolha dos locais para a implantação das obras foi alvo de uma avaliação demorada. Foram escolhidos três, mas, como o Sopro demorou mais do que o esperado a chegar ao terreno, a parede para a peça de Nuno Viegas e Romero ficou indisponível, devido a obras inesperadas.
“Há também aqui um diálogo, desta vez com o território e com as pessoas que nele habitam. O Casal do Malta, onde se situa a parede alternativa, é habitado por quem trabalhou na indústria do vidro. E, pelas conversas, notámos que este é um assunto que mexe muito com elas.” Nuno Viegas acredita existir um binómio na mensagem transmitida pela intervenção que lhe coube.
É, para ele, um subtexto sobre origens e identidade.
“As luvas de látex são elementos que vêm de um mundo que represento constantemente nos meus trabalhos, que é o dos graffiti. As luvas são usadas pelos artistas que os pintam e todo o meu trabalho fala dessa expressão artística. Como eu e o Romero temos raízes nos graffiti, é uma lembrança das nossas raízes: ‘viemos dali e agora estamos aqui'”.
Raízes que o artista identifica, igualmente, na imagem central do mural: os vidreiros, que construiram a Marinha Grande.
“Se depender da vontade dos parceiros da organização, a este Sopro outros se seguirão”, remata Ricardo Romero.