Ainda vai com a mesma alegria para o palco?
Vou, sobretudo porque estamos a ver resultados muito positivos, não só para mim, mas para a minha malta toda de Angola, daquele país que muito precisa de algum prestígio dos seus filhos. Não pensava estar a chegar aonde estou a chegar e ainda ser solicitado como sou, em tudo o que é lugar no mundo. Tal como aconteceu com a Cesária Évora, eu também estou na França, com títulos recebidos e com muito carinho e muita fraternidade, mas, principalmente, muito business, muito espectáculo.
Dá-lhe ânimo para continuar.
Sobretudo, se não hoje já estava a tomar conta de galinhas ali com os netos. O mais velho tem 15 anos e o mais novo tem um mês.
Como é que as gerações mais novas recebem a música do Bonga?
Muitíssimo bem. Mas todas as faixas etárias estão representadas nos espectáculos que dou – e isso é muitíssimo bom. E nos camarins vêm ter comigo para as fotografias, com os telemóveis. E quando a gente põe alguma coisa no Facebook, vem logo a adesão dos miúdos a quererem estar connosco, alguns com a mesma tónica musical, as mariquinhas, as frutas de vontadee os currumbas, que ficaram na boca dos pais deles e dos avós, e eles também ouvem.
Música para todas as gerações.
Para todas as gerações, exactamente.
Mas a sonoridade adapta-se?
Está a pôr uma questão muito importante, porque eu, através do carácter que tenho, digamos um pouco nacionalista, tradicional e africano, e tendo viajado para os países que viajei e conhecido as pessoas que conheci, alguns até queriam me colonizar o espírito, para mudar-me características musicais e autênticas, eu tive que resistir.
Em que sentido?
Da minha melodia e da minha rítmica. Queriam se servir da minha voz, voz rouca, como os James Browns e Rays Charles e companhia limitada, mas não conseguiram. Queriam uma música mais atirada para o internacional e menos a raiz africana, de que muita gente ainda tem complexos, com os quais eu tenho que lutar, com a minha coerência. Sendo eu a referência que sou, por conseguinte é preciso manter esta referência, quanto mais não seja para o bê-á-bá de muitos que se iniciam agora.
Quando começou, a raiz tradicional, na música, era também uma bandeira política, que se levantava contra o colonialismo?
E depois contra os meus patrícios também, porque nós tivemos a independência e não foi para a gente lutar uns com outros, não é verdade? Que foi, infelizmente, o que aconteceu, com o beneplácito de muitos europeus que foram para lá buscar massa, e dividir-nos para reinar, vendendo-nos aquilo que a gente não estava a precisar, que eram armas. E então a gente dizimou-se entre nós, o que fez com que eu continuasse, com muito mais apego, a minha canção de intervenção.
O seu objectivo inicial era dar voz à cultura que conhecia e que o rodeava?
Sim, sim, sim. Dos bairros pobres de Angola, da língua kimbundo, que não é um dialecto, é uma língua, e dizer aos jovens da nossa vivência, com a identidade que nós praticamos, que era finalmente uma forma de estar, continua a ser, de agir, de respirar, de dançar, de comunicar com os outros, mas preservando a nossa personalidade.
Foi sempre um homem e um músico politizado?
Sim, mas quem é que não era? Por tudo o que a nossa geração sofreu, tínhamos mesmo que ser. Quanto mais não fosse para recordar a vivência de um passado recente, tínhamos todos que ser conscientes da situação.
Trouxe-lhe alguns contratempos.
Como não podia deixar de ser. Directamente, indirectamente, com ameaças, com chantagens, com boicotes nos espectáculos, com o apagar da luz no momento em que eu ia cantar uma canção de intervenção, com recados, com dinheiros, maços de dinheiro, para que eu deixasse essa linha. Com essas labaredas todas, que não chegaram a queimar. Antes e depois do 25 de Abril.
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Daí surgiu o exílio na Holanda, depois Bélgica, França e Alemanha. Como foram esses anos 70?
Foi complicado, porque ninguém está à espera que de hoje para amanhã seremos obrigados a partir para outras paragens, sem estarmos preparados para tal. Tem que haver um temperamento muito forte, ultrapassar determinadas coisas e ganhar outras mais, para dar seguimento a um pensamento que era fundamental. Preservar, dar voz. Que eu consegui. Ainda hoje estou para saber como é que foi.
Sem cedências?
Sem cedências nenhumas. E depois havia a vida. Havia a prostituição, a droga, os copos, enfim, ser aliciado para muitas outras coisas, inclusive, para cantar outro tipo de música. Não se pode aceitar.
Já se sentia à época o embaixador da música angolana?
Isso foi o povo, que assim que sentiu o primeiro disco, gravado em 1972, reagiu pela positiva. A responsabilidade aumentou, a partir deste disco, que era um disco informativo, e político, de características muito fortes, em que eu tentava testemunhar tudo quanto tinha visto até ali. E não pensava ser artista, nem pouco mais ou menos.
Aconteceu-lhe?
Também não é por azar que a gente canta, não é por azar que a gente tem ritmo. Já tinha sido iniciado em Angola, fundei grupos folclóricos, faço parte da geração que preservava e conservava as tradições das raízes, porque havia muita gente com o complexo do batuque, com o complexo de pôr uma túnica africana, com o complexo de dançar um ritmo. Não se afirmava a africanidade, mas afirmava-se uma cultura que não era a nossa, a cultura portuguesa. Nós podemos fazer as duas coisas, mas termos muito mais empenho por aquilo que é nosso, porque o que é nosso é a cultura africana.
Ganhou fama internacional, afirmou- se no estrangeiro. Também ganhou bom dinheiro?
Ganhei algum dinheiro, sim. Felizmente, muita gente desfrutou, os meus amigos de combate, os meus amigos da música, do espectáculo, das promoções. A família não digo, porque não tinha contactos com Angola, eram raros, para não pôr a família em perigo, exactamente, não havia nem telefonemas nem coisíssima nenhuma. Mas houve dinheiro. E quando saio da França e venho para Portugal depois do 25 de Abril, há a Discossete, que faz-me o favor de fazer imediatamente aquela lágrima no canto do olho, os currumbas, discos de ouro e platinas aqui, portanto, em matéria de dinheiros, folgadíssimo da costa. Mas muitos mais ganharam mais do que eu.
Podia ter ganho mais?
Evidentemente, se as coisas não entrassem nas candongas, nas obscuridades, enfim, coisas que eu não controlava, podia ter ganho muito mais.
E para onde é que foi o dinheiro?
Isso agora. Pergunte ao vento que passa…
Onde é que tem mais reconhecimento? Em Portugal? Em Angola? Noutros países?
Cada coisa a seu jeito a seu tempo. O que é certo é que as casas enchem- se em Portugal, enchem-se em Angola e enchem-se principalmente em França, onde tenho o título de Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras, muitíssimo bom, é um prémio que nunca foi dado a angolano nenhum. O meu público em França são franceses, em 80%. Já conquistei muita coisa, são 45 anos de carreira.
Consigo a cantiga ainda é uma arma?
Ainda é uma arma, muitíssimo importante. E mortífera, nalguns casos. Eu combato a injustiça e a falta do reconhecimento de valor. Nós temos valores imensos, mas ainda estamos num estado de pedra, aquela que ainda não se desenvolveu, não se emancipou. E isso é complicado para deixar outro, que tenha outras capacidades, entrar sem que seja no sistema partidário, clubístico. É triste. Conheci muita gente de valor, personalidades muitíssimo importantes, que não participaram nos destinos do país, por não estarem alinhados.
Está a falar de liberdade, também.
Sobretudo. Eu sou livre e sou uma pessoa emancipada. Digo o que quero, quando quero, onde estiver. Mesmo em Angola.
Continua a ver-se como músico de intervenção?
Se quisermos, sim. E às vezes a música tem muito ritmo, as pessoas dançam, sem saber que estou a falar de coisas muito graves e muito profundas.
Uma pergunta que já lhe fizeram mais do que uma vez: quem é a Mariquinha?
A Mariquinha são várias mulheres, no meio disto tudo, mas é a mulher que vai tentar a sorte em Angola, umas dão-se bem outras dão-se menos bem. Aquela Mariquinha imaginária que vai para lá, enfim, quantas Mariquinhas não surgiram? Algumas ficaram por lá, enriqueceram- se, outras perderam tudo o que tinham, outras arranjaram uns maridos, outras prostituíram- se e outras foram e já voltaram, arrependidas de terem feito o percurso Lisboa Luanda.
E o que é que o faz ficar com a lágrima no canto do olho?
Muita emoção, da vida. É a vida. É a lágrima de muita alegria, porque nunca pensei ser abraçado por pessoas que me abraçaram, os títulos, as menções honrosas, que me foram dadas, no país do Messi, na Argentina, no México, na Alemanha, na França. E não se esqueça também que depois, por uma questão de dor de cotovelo, as autoridades angolanas também me deram o prémio da Cultura. Antes tarde do que nunca. Pronto, aí a lágrimazinha no canto do olho vem sempre. E principalmente cada vez que eu tenho um espectáculo onde vejo velhos e novos a ouvir e a cantar como se fosse uma coisa nova. É claro que têm importância, essas coisas.
Vive em Portugal há muitos anos. Sente-se mais português ou angolano?
Angolano sempre, mas com uma tónica de Portugal muitíssimo forte. Não se esqueça que eu sou frequentador do parque Mayer para ver revista, que eu adoro, sou da sardinha assada e dos bairros típicos de Lisboa, já fui padrinho de marcha popular, ouço fado, sou do tempo do copo de 15 copo de 3, e falar para as pessoas na rua, trazer um bocado da minha africanidade, para desmoronar um bocadinho deste preconceito, que ainda existe, infelizmente, nos nossos dias.
Preconceito ou racismo?
Algum racismo, também. Que continua a existir. Porque não se faz nada, no bom sentido, para terminar isso. As pessoas são as pessoas e deviam ser vistas como tal. Pelo sentimento, pelo carácter. Para mim são as pessoas e o valor que elas têm. Sabe que há indivíduos nossos que são considerados os assimilados à cultura do outro. Acho que isso é uma vergonha. A pior coisa que pode haver é a gente ser assimilado à cultura do outro. E isso complicanos porque a partir daí criamos complexos aos filhos. Se o pai é tratado assim, os filhos estão submissos ao pai, que lhes impõe uma determinada forma de ser. Daí que aumente então o preconceito, o racismo.
Dá-lhe esperança esta nova etapa política em Angola?
Está a ser uma etapa muitíssimo complicada, porque continua a ser o mesmo partido que explorou Angola esse tempo todo. E que deixou Angola de rastos. Por muito boas intenções que o João Lourenço tenha, e eu estou a acreditar nas intenções dele, pela tónica que ele teve imediatamente no princípio do seu mandato, estou a acreditar, mas é preciso o povo ser reconhecedor da mudança e sentir que não é do pé para a mão que de repente vai haver água nas torneiras, electricidade, pão para toda a gente, medicamentos. Não vamos começar uma crítica severa a um homem que começa agora a governar. Vamos é dar-lhe força, acreditar, e principalmente seguirmos a tónica que ele lançou, de anti-corrupção.
O que é mais urgente?
Dar de comer a quem tem fome, escolarização e assistência médica. Fundamental.
Amanhã, sexta-feira, 22 de Junho, Bonga está em Leiria para um concerto ao vivo no contexto do festival A Porta. O espectáculo é de acesso gratuito e acontece ao ar livre no Jardim Luís de Camões, depois das 23 horas. Bonga, nascido José Adelino Barceló de Carvalho, em Kipiri, na província do Bengo, a norte de Luanda, chega aos 75 anos de idade com 30 álbuns editados, fora compilações e gravações ao vivo. Começou na infância como percussionista a acompanhar o pai, que tocava concertina, depois fundou grupos musicais que bebiam no folclore angolano, mais tarde, em Lisboa, tocou percussão ao vivo e em estúdio com outros músicos africanos, incluindo o Duo Ouro Negro. Veio para Lisboa com 23 anos, na década de 60, para representar o Benfica na equipa de atletismo. "Cheguei aqui pulverizei logo o recorde de Portugal dos 400 metros". Foi várias vezes campeão nacional – "Grandes tempos" – e nunca se sentiu incomodado por representar a selecção portuguesa. "Pelo contrário, enriquecia-me, porque sendo eu africano de Angola, com essa pujança toda, a representar de um lado a minha terra, pela potência, e do outro lado, Portugal, que é um país com o qual nós temos um relacionamento do caraças". Por motivos políticos, na década de 70 sai para a Holanda e é lá que grava o primeiro disco, Angola 72, que imediatamente lhe garante o reconhecimento do público e abre caminho a uma carreira onde sobressaem Mariquinha eLágrima no canto do olho, entre outras canções. Premiado em vários países, destaca-se, em França, o título de Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras. Depois de viver na Holanda, Bélgica, Alemanha e França, regressou a Portugal na década