Lurdes Jesus, com 87 anos e com Alzheimer, desmaiou em casa e acordou confusa. Os filhos recearam que pudesse estar a sofrer um Acidente Vascular Cerebral e chamaram o INEM, que a transportou para o Serviço de Urgência Geral (SUG) do Hospital de Santo André, do Centro Hospitalar de Leiria. Chegou pouco depois das 13 horas. Cerca das 19 horas ainda não tinha sido atendida. Apenas tinha passado pela triagem, que lhe atribuiu a pulseira amarela. Um dos profissionais de saúde disse à filha que tinham faltado dois médicos e não estava a ser fácil dar resposta aos utentes que transitaram do turno anterior e aos que entretanto chegavam.
“A equipa foi impecável. Desde os enfermeiros aos auxiliares. Como a minha mãe tem Alzheimer deixaram- -me ir ter com ela. Mas, não é aceitável que um hospital como o de Leiria, que se diz certificado, não tenha médicos na urgência. A pandemia não é desculpa, até porque este é um problema recorrente”, desabafa Maria de Jesus. O problema principal é a falta de recursos humanos: médicos e enfermeiros. Segundo um profissional de saúde do SUG “não há generalistas”.
“Muitas vezes, um médico tem a responsabilidade de atender os doentes das alas verde e amarela e da Área Dedicada para Doentes Respiratórios (ADR)”, criada durante a pandemia. “Há situações de pessoas que estão na urgência 18 horas. Chegam, realizam exames e depois não há médico para as reavaliarem e lhes darem alta. Os médicos que entram de turno tentam ‘despachar’ quem já lá estava e atender quem chega. Não é fácil”, acrescenta a mesma fonte.
Embora tenha esperado menos tempo, Lara Jordão passou por algo idêntico. A jovem entrou nas urgências encaminhada pela Saúde 24, com uma dor no peito. “Fui observada e realizei exames.” Fez medicação intravenosa e foi ficando nas urgências. “Na sala onde estava havia [LER_MAIS]seguramente umas 30 pessoas em macas. Não havia qualquer médico, pelo que todos aguardavam pela decisão de dar alta ou serem internados. Entrei perto da meia-noite e só saí depois das 8 horas, porque o médico só entrava a essa hora para me dar alta. Permaneci no hospital apenas porque não havia um médico”, revela.
Sentada num cadeirão, apercebeu-se de pedidos dos profissionais de saúde para não admitirem mais doentes e de tentarem mandar embora os doentes com pulseira verde, que não careciam de um atendimento urgente. “Foi como se fechassem as urgências”, constata. Outro médico aponta também a falta de recursos humanos, tendo em conta a área de influência da SUG.
“Não há especialistas para preencher a escala das urgências. Aproveita-se muitas vezes os internos e depois não há capacidade de formação. Não temos tempo para discutir os casos com eles. A pressão é enorme sobre os internos. Limitamos-nos a dizer o que fazerem quando nos perguntam”, lamenta. Por vezes, há apenas um especialista no SUG, o que impede também a troca impressões com outros colegas sobre determinado caso, refere o profissional de saúde, ao acusar a administração de pensar “sobretudo nos números” e “obrigá-los a fazer muitas noites”.
“Temos os melhores números do País, mas faltam recursos humanos. Há uma carga elevada no serviço. As pessoas estão muito cansadas, o que leva ao desgaste e ao burnout.” Segundo este médico, “o hospital nada faz para fixar profissionais de saúde” e a prestação de serviços é contratada “pelo mais baixo custo”.
“Todos os hospitais aqui à volta oferecem mais dinheiro. Não há a preocupação com a qualidade. Temos especialistas brilhantes que trabalham connosco de vez em quando e que o hospital nada faz para os fixar”, reforça.
Outro profissional de saúde relata ainda que as equipas de enfermeiros no SUG são também pequenas. “Por exemplo, três enfermeiros para o ADR é curto. Há sempre uma zona que fica desprotegida de um profissional. Há dias em que ninguém vai sequer à casa-de-banho. Mas, entrando às 8 horas, por volta das 13 temos de comer alguma coisa, caso contrário ainda desfalecemos”, constata.
Sem médicos, os enfermeiros ficam também de mãos atadas para medicar os doentes. “Há pessoas com dores e que estão em sofrimento. Se não há um médico para prescrever algo, só posso dar um SOS, como o paracetamol”, afirma uma enfermeira, ao revelar que há cerca de duas semanas foi “pedido ao CODU [Centro de Orientação de Doentes Urgentes] para não enviar mais gente para Leiria e para encaminhar os doentes para outras unidades de saúde”.
O JORNAL DE LEIRIA sabe ainda que devido à falta de generalistas, foi pedido a médicos de outras especialidades para fazerem urgência, o que desagradou a alguns destes profissionais de saúde, que não aceitaram pois consideram que “depois alguma coisa fica para trás”. Ivo Gomes, representante em Leiria do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses, confirma a falta de recursos humanos.
“Temos vindo a alertar para as dotações que o hospital tem de ter. Anda-se a tapar os ombros e a destapar os pés. Aproveitando a pandemia, poder-se-ia ter contratado mais enfermeiros, mas o que se tem feito são contratos de substituição, com a promessa de serem depois integrados. Os horários saem já com horas extraordinárias, que são usadas apenas pontualmente, quando um imprevisto surge”, adianta Ivo Gomes.
Segundo o dirigente, se essas horas já aparecem no plano dos enfermeiros “é porque se reconhece que há falta de recursos humanos”. “Estes problemas sempre existiram e a pandemia veio ampliar a situação. Lutamos por uma dotação segura.” Para Carlos Cortes, presidente da Secção Regional do Centro da Ordem dos Médicos, o problema das urgências hospitalares (Leiria não é caso único) resolver-se-á com uma “reestruturação profunda” do sistema.
“É preciso uma articulação entre os cuidados hospitalares e os cuidados de saúde primários”. Carlos Cortes admite que mais de 40% das urgências no HSA sejam “falsas”, mas alerta que os doentes precisam de uma resposta aos seus problemas. “A pandemia tem de ser uma oportunidade de reflexão para todos. É preciso melhorar a comunicação e a relação dos cuidados de saúde primários com os doentes. Muitas vezes, o doente não precisa de se deslocar ao centro de saúde ou ao hospital”, assume, reconhecendo que há diagnósticos fáceis de fazer à distância. “O grande desafio do Serviço Nacional de Saúde é a articulação. A falta dela acaba por ter impacto nas urgências”, constata, salientando que enquanto a solução não aparecer, não se podem deixar os doentes sem resposta.
Segundo um dos médicos ouvidos, a questão das ‘falsas urgências’ é uma “falsa questão”. “Como é que eu sei que é uma falsa urgência? Um enfarte pode ter sintomas ligeiros que se confundem com outros. Só saberei o que é depois da realização de exames complementares”, assume, referindo que também os cuidados de saúde primários estão com excesso de trabalho. “A solução é ter um rácio de recursos humanos adequado à hora de influência.”