Imagine uma autarquia que consegue saber, em tempo real, quais as ruas mais afectadas pelo trânsito, quais os ecopontos que já estão cheios, quais os sector da actividade económica onde os turistas que a visitam gastam dinheiro, a sua origem geográfica e interesses, disponibilizando estes e outros dados numa aplicação de telemóvel ou num dashboard que ajude os autarcas a gerir o seu território. Parece algo saído do livro 1984, mas muita desta tecnologia já existe e há quem queira ir além e usar dados para as políticas públicas futuras.
Imagine que é um presidente de câmara ou de junta de freguesia e que gostaria de saber, em tempo real, quanta riqueza está o seu território a produzir, se há rupturas de água ou de saneamento, quanto irá custar a reparação ao erário público ou se há armazenamento de material disponível para as reparações. Imagine que quer programar o plano de gestão autárquica e orçamento para o próximo ano e necessita de uma visão mais global e actual do que aquilo que os relatórios em papel dos últimos meses e anos lhe dão. Imagine que consegue ter acesso a tudo isto a partir de uma aplicação no seu telemóvel ou de um painel de controlo no seu computador pessoal, que lhe exibe não apenas os valores reais ao minuto, mas também a perspectiva estatística de uma miríade de cenários.
Parece ficção científica? A Comunidade Intermunicipal do Oeste (Oeste CIM) está a testar uma solução com estas e muitas outras características e apresentou o fruto deste trabalho, criado em parceria com a NOVA IMS, unidade da Universidade Nova, na Feira Mundial das Cidades, em Barcelona, no Pavilhão de Portugal.
O Projecto Oeste Smart Region assenta num modelo e algoritmos criados para predição em algumas zonas da cidade de Lisboa, tendo sido depois expandido à zona de uma comunidade intermunicipal, interligando os 12 municípios da Oeste CIM. “Interligámos de forma dinâmica estes concelhos com dados recolhidos através de várias fontes. Com os valores bottom up e top down construímos uma abordagem analítica para darmos a conhecer o território.
Por exemplo, inserimos lá o Guia do Investidor, disponível para todos os municípios do Oeste. Também usámos os dados da SIBS Analytics [portal de indicadores de consumo que mostra, de forma agregada e organizada, os dados de consumo em Portugal, através da actividade nos múltiplos canais geridos pela SIBS, empresa que, em Portugal, administra a área dos pagamentos electrónicos e de multibanco], para informar os presidentes de Câmara, que, na última semana, a uma escala que vai à freguesia, sobre quanto dinheiro foi gasto, em que sector da actividade económica até ao terceiro nível, e a origem geográfica das pessoas que fizeram as compras; o país, no caso de serem estrangeiros e o concelho, no caso de serem nacionais.”
A explicação é de Miguel Castro Neto que chama a atenção para a importância de um sistema deste tipo num sector como o turismo, para a criação de oferta e captação de visitantes.
O director da NOVA IMS deu a conhecer o Oeste Smart Region durante a conferência “Pombal: um concelho de futuro” organizada pelo Município de Pombal e pela Comunidade Intermunicipal da Região de Leiria (CIMRL) e alertou que um sistema nestes moldes, para poder ser aplicado em pequenos municípios, só é possível conceber e implementar através das Comunidades Intermunicipais. “Não é possível, sem economias de escala e sem trabalho em rede, trabalhar este conceito. Será que os municípios nacionais, tirando as grandes e médias cidades têm capacidade de construir plataformas destas? O valor do processo chegará sempre a vários milhões.”
Da loja de bairro, à gestão autárquica
A NOVA IMS iniciou o seu trabalho neste sector a partir da preocupação de devolver as cidades aos cidadãos, no sentido de criar comunidades, de aumentar as interacções sociais. Na génese, está um conceito familiar, o de, enquanto elementos da sociedade, passarmos a viver num “bairro” e criar relações de amizade e de cooperação, com os restantes membros, gerando relações gratificantes e frutíferas como aquele que se estabelece com os comerciantes locais que nos levam as compras a casa. Mas com a ajuda da tecnologia e da recolha, análise e tratamento de dados, com vista a uma “gestão prospectiva”.
Actualmente, existem já várias soluções que utilizam a cidade e o território como plataforma, onde os dados de sistemas, de software, de sensores no espaço público e telemóveis – que fornecem um apoio de forma activa ou passivamente – são reunidos e permitem agir em tem ritmo que consegue prever de quanto vai ser a procura em cada estação de bicicletas nas próximas três horas, para fazer um balanceamento da rede.
Assim, garante-se que há sempre bicicletas disponíveis e que haverá sempre baias vazias para as entregar. “Não estamos apenas a descrever o que está a acontecer mas estamos já num primeiro nível de maior sofisticação analítica de prevermos o futuro. Contudo, se conseguirmos descrever o passado e prever o futuro, poderemos aplicar a analítica prescritiva”, refere o director da NOVA IMS.
Num outro exercício, o grupo de trabalho analisou os acidentes rodoviários de Lisboa e identificou quais eram as variáveis que explicavam o risco de acidente, tomando em conta dados históricos como a meteorologia, as características da infra-estrutura rodoviária, os feriados, os fins-de-semana e de semana. Depois, foi construído um simulador digital, onde pode ser escolhido um troço onde se dão acidentes e alterando o número de faixas, a velocidade ou a existência ou não de um radar de velocidade, perceber como estas alterações conduzem a um maior ou menor nível de risco e o que se quer alcançar.
“Deste modo, podemos planear a intervenção na cidade e tomar medidas localizadas.” Curiosamente, um dos modelos criados pela NOVA IMS mostrou que em Lisboa, onde foi testado em ambiente real, que nos locais onde há radares de velocidade há mais acidentes, porque os automobilistas travam e provocam embates. “No entanto, agora, já com uma rede de radares interligados a funcionar, os acidentes diminuíram porque houve uma redução geral da velocidade em todo o território da cidade”, conta Miguel Castro Neto.
Melhoria da conectividade
No futuro, o especialista recomenda que, para permitir a adopção de sistemas com as funcionalidades a que o Oeste Smart Region aspira, haja uma melhoria da conectividade através de sistemas rápidos de comunicação e de grande fluxo, como o 5G.
“Tem de existir cobertura. Não é possível não existir porque nada disto funciona sem conectividade”, sublinha, avisando que há diferenças substanciais entre o conceito de “território 100% servido” e o de “população 100% servida”, mais utilizado pelos operadores no mercado nacional. Mas nem só de redes de telecomunicações de última geração vive a transição para uma gestão autárquica mais eficiência, económica e de acordo com as necessidades dos munícipes, optimizando o dinheiro do erário público. É preciso ter quem saiba trabalhar com os dados, de modo a que sejam criadas políticas públicas “data driven”, isto é, baseadas na recolha de dados às escalas macro e micro, em tempo real.
“Precisamos de dar competências aos técnicos municipais, mas também aos dirigentes políticos sobre o que isto significa. Apenas se todos perceberem o espaço de oportunidades que se podem fazer é que se pode desenhar uma estratégia que faça sentido e seja exequível”, afirma Miguel Castro Neto.
Mas há bloqueios que se revelam difíceis de ultrapassar. O maior de todos é a recolha de dados. “Temos um problema muito sério com o Regulamento Geral de Protecção de Dados (RGPD), que se transformou num bloqueio à inovação. As organizações não têm capacidade jurídica para interpretar o RGPD e libertar os dados, cumprindo o respeito pela privacidade. Isto quer dizer que precisamos de escala. Temos de ter a capacidade de trabalhar em conjunto. Os dados de mobilidade são iguais em todo o País. Alguém, que diga como se conseguem libertar os dados de mobilidade, cumprindo este regulamento geral. Há uma ausência de capacidade de orquestração de uma solução que seja escalável e permita poupar recursos e que nos permita avança, pois, se não o fizemos, corremos o risco de haver concelhos que conseguirão fazer este caminho e muitos que não o farão.”