O Regime Geral da Prevenção da Corrupção (RGPC), que entrou em vigor no ano passado, decorre de uma directiva da União Europeia e, entre outras medidas, obriga entidades públicas e empresas privadas, com mais de 50 trabalhadores, a criar um canal interno, através do qual os colaboradores dessa organização possam apresentar queixas sobre situações que nela ocorram, relativas a corrupção, contratação pública e utilização de fundos europeus.
Embora tenha carácter obrigatório, e as entidades que não o implementem possam ser punidas com coimas, o JORNAL DE LEIRIA constata que este canal está longe de ser uma das preocupações das empresas da nossa região.
Além disso, e apesar da pertinência da sua implementação, trata-se de um mecanismo “complexo”, de “difícil aplicação” e susceptível de ser usado de má-fé, com efeitos “perversos” para as organizações e para os seus funcionários, alerta Inês Oliveira, especialista em Protecção de Dados.
A jurista começa por realçar a bondade da iniciativa do legislador, que pretendeu [LER_MAIS]sensibilizar para o combate à corrupção. Quis criar canais nas empresas, onde de forma “fácil e segura, numa lógica de compliance, os seus trabalhadores possam apresentar queixas sobre corrupção e outros crimes que nelas ocorram”.
Esse canal tanto pode ser uma caixa de reclamações física, onde são depositadas mensagens escritas, como uma plataforma informática criada na cloud, ou mesmo uma conta de email.
O objectivo é que as queixas sejam direccionadas para uma pessoa ou uma equipa que faça a gestão das denúncias, que as analise e, se for o caso, encaminhe as situações para as entidades competentes, “sem com isso se sobrepor às polícias e aos tribunais”, realça Inês Oliveira.
Mas a especialista não deixa de criticar o efeito “perverso” que estes canais podem ter. O denunciante pode manter-se anónimo ou identificar-se, sendo que, se revelar a sua identidade, adquire estatuto especial de protecção, não podendo ser alvo de despedimento ou de cessação antecipada do contrato.
Um colaborador mal intencionado poderá denunciar uma falsa ocorrência com o objectivo de adiar o despedimento, exemplifica. No limite, poderá até acontecer que um colaborador utilize o canal de denúncia para apresentar queixa contra o outro colaborador, que é responsável pela gestão desse canal, nota a jurista, para quem este mecanismo pode suscitar “conflitos de interesses entre funcionários”.
O ideal seria que a gestão desse canal fosse feita por uma equipa externa à organização, defende. Por outro lado, estas queixas poderão atentar contra o bom-nome de um colaborador ou empresário denunciados que, ainda antes de uma investigação das autoridades, já estão internamente a ser analisados.
Além disso, também causa “perplexidade” que o regime já esteja em vigor e que o Mecanismo Nacional Anti-Corrupção ainda não o fiscalize, refere Inês Oliveira. Dedicada ao fornecimento e implementação de sistemas de informação, a Trigénius, de Fátima, tem parceiros que desenvolvem software com módulos que visam garantir a recepção e tratamento destas denúncias.
No entanto, observa Jorge Galhispo, responsável de Sistemas de Gestão da Trigénius, de modo geral, as empresas da região “não estão muito atentas a este tema. Está longe das suas agendas”, manifestando-se mais preocupadas com outras obrigações legais, do ponto de vista fiscal, por exemplo, e em garantir que, face ao aumento do preço dos produtos e da energia, se mantêm competitivas.
“Em Portugal não há cultura de denúncia”
“Há muitas empresas que ainda não fizeram este canal de queixas. Entre os empresários que as implementaram, há quem realmente o tenha feito por achar que era interessante ter um sistema robusto de denúncia e de análise, mas também há quem o tenha feito para cumprir uma obrigação legal”, constata o CEO, para quem o sentido deste mecanismo está na efectiva interpretação das denúncias.
O seu próprio grupo de empresas também já implementou este sistema. Foi necessário dar formação aos colaboradores sobre corrupção e formação à área jurídica e de recursos humanos que analisa os dados. Decorridos alguns meses, ainda nenhuma notícia chegou à administração sobre eventuais queixas através deste canal.
“Em Portugal, não temos cultura de denúncia, por isso vai demorar até que este mecanismo surta efeitos”, acredita o empresário.