Integrou a primeira redacção do Jornal de Leiria (JL). Como foram esses tempos?
Foram fantásticos e cheios de vida. Todas as semanas escrevia a coluna Condição ‘cine’-qua-non, sobre cinema, dando voz à minha costela cinéfila, muito motivada pela paixão transmitida por um avó americano e pela constante leitura de revistas americanas e francesas da Sétima Arte, e pelo meu eterno amor pela tela branca preenchida pelo olhar e voz da Garbo, da Meryl, do De Niro ou da Streisand. Além disso, fui um dos sócios fundadores da cooperativa que criou o Jornal, ao lado, entre outros, do meu querido amigo António José Laranjeira, que já voou para outra dimensão e que tanta falta me faz. No JL fiz de tudo com os meus companheiros de quimera: embalei exemplares para o correio, bati à máquina, fiz reportagens e até horóscopos. Era estudante universitário de Direito em Coimbra e dava muito do meu fim-de-semana ao JL e até à Rádio Clube de Leiria, onde fiz durante anos um programa semanal chamado A Nau da Bonança. Sentia-me tão completo nestes pioneiros tempos de jornalismo e de activa e culta cidadania numa cidade com muito pouca ambição na altura.
A escolha do filme estava limitada à película semanal de Leiria?
Normalmente seguia o cartaz, sempre apoiado pelo meu saudoso amigo Zé Luís Neves Júnior que geria a programação do Teatro José Lúcio da Silva e que falava comigo horas sobre o Spencer Tracy, o seu Bogart, o Marlon Brando ou a Ingrid Bergman. Foi ali que vivi o meu Cinema Paraíso. Fui o menino “Toto” que sempre procurava o seu “Alfredo” naquela capela de fitas, encerrando uma sã colaboração com ele. Voava nos artigos sobre outras fitas mesmo que não estivessem em cartaz – dava até ideias ao Zé Luís para as “contratar”.
Recebeu também críticas do público a discordar das suas… críticas?
Amiúde li-as na minha coluna de rádio, chegando a receber telefonemas ao vivo e até cartas de fãs, que ainda guardo e que hoje me fazem rir. Lembro uma senhora que foi ao ‘Zé Lúcio’ ver A Mulher do Lado, de François Truffaut por causa da minha coluna, o que muito a ajudou – diz ela – a resolver um problema conjugal, imagine-se…
Enquanto juiz, dedicou a sua vida à justiça relacionada com as crianças. Trinta e cinco anos depois da Convenção sobre os Direitos das Crianças, o que continua a falhar na defesa das crianças?
Dei muito de mim à Jurisdição da Família e das Crianças, como juiz de Direito, docente e director-adjunto do Centro de Estudos Judiciários, formador e orador em vários colóquios no País e no estrangeiro. Apesar de agora trabalhar na secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, considero-me um trabalhador da infância, tal a cruzada que vou erigindo em prol dos direitos dos mais pequenos, os mais importantes do mundo, na senda do meu mestre e mentor Armando Leandro. Ao longo dos últimos 25 anos, muito se tem feito em Portugal em prol do abandono da concepção de uma certa menoridade desta jurisdição. Por isso, não falo nunca de ‘menores’, palavra malcheirosa a substituir pela mais perfumada chamada ‘criança’. Sedimentou-se a necessidade de se adoptar uma cultura da criança, olhou-se a criança como sujeito de direito e de direitos, fala-se hoje cada vez mais dos seus direitos (correspectivos de deveres), impôs-se a defesa clara da indignidade de qualquer tipo de violência sobre ela, defende-se que ela é vítima de violência doméstica, mesmo que seja só espectadora de cenas de violência lá por casa, normalizou-se a ideia de que as crianças devem ser ouvidas de acordo apenas com a sua maturidade e discernimento, defende-se um trabalho em rede entre todas as instituições que, no terreno, tentam minorar ou extinguir o perigo na vida dela. Contudo, terei de admitir que, em muitos campos, a máquina ainda não funciona plenamente, quer ao nível das práticas de alguns agentes humanos, como da coordenação entre as intervenções dos vários operadores. Continua a haver falta de investimento estatal nesta área, falta de políticas públicas que entendam que esta matéria é prioritária e que se deve dar um relevo imenso à prevenção, falta de gente – a certa e adequada, não a nomeada por critérios políticos – no sistema de promoção e protecção, falta de condições para a actuação dos fantásticos comissários das CPCJ, que continuam, quantas vezes, a laborar sem condições logísticas para o efeito. Há tantos constrangimentos na actuação hábil de um sistema de promoção e protecção: como interpretar os sinais de perigo? Haverá ou não desinvestimento, por parte dos decisores e das assessorias, no trabalho desenvolvido com as famílias, nomeadamente no que se refere ao planeamento do regresso das crianças, a partir do momento em que estas são retiradas e ingressam no sistema de acolhimento? Daremos assim tantas benesses às famílias biológicas? Como se afere que uma família é credível e como elencar aquelas relativamente às quais vale a pena investir? Quando é que os pais atingem o nível desejado de superação suficiente do perigo que criaram, por acção ou omissão, para o seu filho? Estas famílias dão-nos tantos sinais contraditórios. Defendo, por isso, o incremento de um acompanhamento mais próximo e de uma capacitação no âmbito da parentalidade e do necessário apoio económico para as pessoas que acolhem crianças em perigo (não basta dar dinheiro pois ele, por si só, não faz milagres), preconizando também a concessão de prazos peremptórios às famílias biológicas para se reorganizarem e fazerem cessar de vez o perigo criado para o filho, desde que tal só dependa da sua vontade e empenho (ser pobre não é crime em Portugal e, por isso, o Estado-Providência deve estar atento sempre a tais situações de carência económica, potenciadores do risco/perigo em que vive uma criança). Aqui chegados, pergunto-me se não será altura de melhorar a vida das crianças em vez de só discutir a sua protecção. As nossas políticas sociais e as práticas judiciárias têm estado até agora dominadas pela reparação das falhas parentais, estando na hora de substituirmos esse paradigma por uma abordagem centrada na avaliação pluridisciplinar das necessidades da criança para apoiar o seu efectivo desenvolvimento.
Como se substitui esse paradigma?
Há que apostar numa verdadeira governação integrada do sistema, priorizando a prevenção através da minimização dos factores de risco e do fortalecimento dos factores de protecção, dar um valor absoluto ao tempo da criança que não é o do adulto, devendo as intervenções ser marcadas pela celeridade, pela integração e pela exigência de um diagnóstico precoce e o mais certeiro possível e defender a prorrogação das actuais medidas a executar em meio natural de vida da Lei de Protecção até aos 25 anos de idade, alargando também os prazos de duração das medidas a executar em meio natural de vida. Falta valorização e empenho no acolhimento familiar de crianças em perigo tendencialmente obrigatório até aos seis anos, estruturar, para o sistema português, um plano estratégico de desinstitucionalização progressivo e, por isso, ambicioso, assim como a possibilidade do acolhimento familiar abranger laços de sangue. É necessário o aumento do prazo de prescrição dos procedimentos criminais em crimes sexuais contra crianças, o incremento do apoio económico às famílias biológicas e às pessoas que exercem o apadrinhamento civil (em vigor desde 2010, mas ainda tão desconhecido para tanta gente), conseguir abrir secções de família e crianças nos cinco Tribunais da Relação e no Supremo Tribunal de Justiça, criar a figura do Provedor da Criança e ponderar a possibilidade dos padrinhos civis – e até os acolhedores familiares – poderem adoptar a criança acolhida, desde que a vontade adoptiva tenha sido criada após a aplicação das medidas de Apadrinhamento Civil e de Acolhimento Familiar.
A comemorarmos os 50 anos do 25 de Abril, como se explica que se continue a assistir a um aumento de casos de violência doméstica, inclusive no namoro entre jovens?
É lamentável que quase metade das adolescentes considere que, nalguns casos, é admissível que um parceiro bata na mulher, segundo um relatório recente da UNICEF. Tudo se pode explicar por uma falta de educação para o respeito pelos direitos do outro, pela falta de atenção parental para os sinais de alarme nos comportamentos dos filhos, pela falta de firmeza parental a esse nível e pelo fatídico mau exemplo dado pelos próprios comportamentos dos progenitores violentos em casa.
O que está a falhar na educação para o respeito pelo outro?
Em muito pouco tempo, a família perdeu a sua estrutura autocrática vertical para se assumir como uma estrutura democrática e horizontal – deixa de haver um que manda e outros que obedecem para passar a ser um conjunto de sujeitos, cada um com os seus direitos, numa relação democrática. O problema reside na forma como se vive a relação democrática, porque muito da violência doméstica é a manifestação de poder e de incapacidade de o fazer valer. Temos de educar as pessoas para os direitos e não tanto para os deveres. Como me ensinou [juiz] Laborinho Lúcio, ao educar pessoas para os deveres criamos súbditos. Ao educar pessoas para os direitos criamos cidadãos, mas com uma diferença: educar para os direitos é educar para os direitos do outro e é educando para os direitos do outro que compreendemos e interiorizamos a responsabilidade de os respeitar.
Quais os principais casos que motivam a intervenção na defesa das crianças?
A violência doméstica e o abuso sexual.
Com a transferência de competências da Acção Social para as autarquias, como tem decorrido a articulação da informação relacionada com os relatórios sociais das famílias entre as câmaras, segurança social e até tribunais?
O caminho faz-se caminhando e haverá ainda algumas arestas a limar, devendo-se evitar as redundâncias, onde a mesma actividade é desenvolvida por duas ou mais unidades desnecessariamente, as lacunas, onde uma acção necessária não é desenvolvida por ninguém, e as incoerências, em que políticas públicas que afectam os mesmos destinatários têm objectivos conflituantes.
Que balanço faz ao papel das CPCJ na defesa das crianças e o que ainda deveria ser melhorado?
Confio muito no seu árduo trabalho e defendo-as até ao fim das minhas forças. Pode ter havido casos mal sucedidos, tal como os há nos tribunais. Nesses casos, urge avaliar para evitar que, na próxima actuação, não se repitam tais eventuais erros avaliativos. Por isso, defenderei a dedicação exclusiva dos técnicos das CPCJ (modalidade restrita), desejavelmente em maior número, sem que isso signifique necessariamente uma profissionalização do seu estatuto, para além de mudanças pontuais na nossa Lei de Protecção. Isto é, mexer nas representações e nas designações dos membros, nas regras relativas às limitações dos mandatos e na efectiva clarificação de alguns conceitos indeterminados presentes no seu estatuto.
Há, por vezes, críticas às assistentes sociais que acompanham os casos de crianças em perigo. A formação e, sobretudo, o número de recursos humanos permite-lhes fazer uma avaliação rigorosa dos casos?
Acredito na boa-fé de todos os operadores. Se há abusos provados devem ser denunciados. Mas direi que as poucas excepções que conheço apenas me confirmam que a normalidade é o trabalho honesto e objectivo, muito embora se saiba que há sempre quem discorde e há sempre um pendor subjectivo em qualquer avaliação. O que eu, tribunal, quero é que me venham dizer verdades. E não deverei nunca ser enganado pelas minhas assessorias.
“A criança de tenra idade precisa de colo, só atingível em meio familiar”
Como se explica a uma criança que não pode ficar com os seus pais porque não sabem cuidar dela?
Com coragem, sabendo falar com ela, ler os seus silêncios e as suas naturais angústias por se ver assim privada do seu pretenso farol e porto de abrigo. Depois de ser um juiz convencido (de uma certa convicção probatória) terei de ser, também para a criança, um juiz convincente, quantas vezes, assessorado por um psicólogo que melhor tal explique do que eu, enquanto juiz. Realço a importância da interacção que se exige entre a Justiça e a Psicologia, nas matérias ligadas à família e às crianças.
É difícil “ensinar” as famílias a cuidar das suas crianças?
É muito difícil, pois ninguém nasce ensinado e há ciclos geracionais de disfuncionalidade que teimam em não se emendarem e em se reproduzirem. Urge saber trabalhar com as famílias, dando-lhes competências parentais, de firmeza, afecto e bom trato, ainda a tempo de reconhecer que o passado de uma criança não terá fatalmente de determinar o seu futuro.
A institucionalização é a última opção, mas a que acontece muitas vezes por falta de famílias de acolhimento. Existe algum trabalho em ‘recuperar’ a família biológica para receber a criança de volta?
Esse trabalho tem de ser feito, a não ser que se decida pela adoptabilidade da criança em perigo, constatando-se a irreversível incapacidade dos pais biológicos para cuidar do filho. Contudo, um erro na vida não significa uma vida de erros e, por isso, há que avaliar o tamanho do erro, a expectativa realista de mudança por parte dos pais biológicos e o tempo da criança que não pode nem deve continuar à espera de uma regeneração familiar que tarda em chegar.
Por que razão há ainda poucas famílias de acolhimento e quais as suas mais-valias?
Assiste-se nos tempos que correm a uma mudança de paradigma ao nível dos acolhimentos de crianças em perigo. Urge privilegiar o acolhimento familiar, em particular até aos 6 anos, dar uma incidência terapêutica ao sempre necessário acolhimento residencial (que não deve ser diabolizado pela defesa do acolhimento familiar) e uma especialização dos acolhimentos residenciais de acordo com as características da população que integra. A criança de tenra idade precisa de colo, de estabilidade emocional e de verdadeira vinculação, só atingíveis em meio familiar, mesmo que provisório. O número de crianças acolhidas familiarmente é residual porque existe ainda pouca oferta de famílias de acolhimento (é uma questão de geografia?), há demasiada tendência para a residencialização, existe falta de empenho estatal na publicitação da medida e pouca solidariedade humana entre os portugueses – quem quer uma criança quere-a sua filha -, explicando-se ainda pelas concepções de alguns dos nossos tribunais que continuam a entender que é preferível um acolhimento residencial, até para evitar a criação de laços e vínculos entre a criança e a família de acolhimento que virão a ser quebrados no mais curto prazo possível. Aguardemos os novos ventos que sopram da acção conjunta da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, do Instituto da Segurança Social, da Casa Pia e de tantas instituições de enquadramento que, pelo país, me vão dando razões para sorrir…
Não há o risco de um impacto negativo na criança, se esta gostar da família de acolhimento e não a querer deixar?
É um mito absoluto que urge ser combatido com toda a veemência. Qualquer colo seguro que a criança venha a ter é saudável e bem-vindo, nunca sendo demais. Pensar o contrário é perpetuar uma solução menos benigna quando é certo que se pode optar por uma outra via mais benfazeja para o desenvolvimento, formação, segurança e saúde mental de uma criança carenciada de acolhimento.
Uma das acusações que se faz à justiça é a dificuldade em considerar as crianças adoptáveis, protelando a sua estadia nas instituições.
Os números da residencialização de crianças são ainda excessivos: cerca de 6.000 crianças. A meta da tutela para 2030 é, entre outras, garantir uma taxa de desinstitucionalização de 80%, passando para um número de 1.300 crianças. Quanto à adoptabilidade sabemos que nem toda a criança em risco está em perigo, que nem toda a criança em perigo é adoptável (sendo restritas as causas do decretamento dessa adoptabilidade) e que, infelizmente, nem toda a criança adoptável vem a ser adoptada, porque tem a idade, a cor ou a saúde “erradas”. As crianças devem sair o mais depressa possível do acolhimento, criando-se um mais definitivo projecto de vida que seja capaz de as levar para uma infância de excelência a que têm ainda direito. E que a nossa sociedade atinja os níveis desejáveis de civilidade, cuidando devidamente de quem, por ser vulnerável em função da idade, sofre dentro do muro das suas cidades. O sistema tem a sua porção de Poder na mão; contudo, o poder só é necessário para fazer o mal. Para fazer todo o resto, muitas vezes, basta o amor (um outro nome para o afecto, um valor jurídico constitucional em Portugal)!