Entre muitas outras actividades, quando era mais nova, a Marta jogou xadrez nos Corvos do Lis. No entanto, teve “outros interesses” e acabou por afastar-se “um bocadinho”. Ficaram os princípios, sempre relevantes, da modalidade, na concentração e no raciocínio, mas a ligação estava quebrada.
Até que, uma série de televisão, lançada em Outubro, fez despertar o encanto adormecido. E agora, aos 13 anos, a estudante na Correia Mateus está de volta aos treinos no clube de Leiria.
Foi o irmão mais velho que chamou a atenção para uma série que estava a estrear na plataforma Netflix. A história, uma adaptação do romance homónimo de Walter Tevis, publicado em 1983, é passada nos anos 50 do século passado, quando uma rapariga de um orfanato revela um talento prodigioso para o xadrez e inicia uma improvável ascensão ao estrelato.
Marta e a mãe, Sónia Santos, docente do primeiro ciclo em Amor, rapidamente se entusiasmaram e devoraram a história em três tempos. “Mais a minha filha, que se antecipou a ver alguns episódios”, conta a progenitora.
Na verdade, não foi só naquela casa que houve impacto. Está a ser global, o fenómeno da série Gambito de Dama, o nome dado a uma jogada de abertura de uma partida de xadrez que consiste num aparente sacrifício de um peão branco, mas que pretende fragilizar a defesa das peças pretas.
De tal forma que, ao contrário de muitos desportos que sofreram as consequências do confinamento, o xadrez experimentou um boom. A plataforma Chess.com, por exemplo, teve 2,5 milhões de novos registos apenas em Novembro.
Algumas pessoas, sentadas no sofá da sua casa, descobriram um novo hobby. As pesquisas sobre como jogar duplicaram no Google e bateram um recorde em relação aos últimos nove anos. A procura de tabuleiros de xadrez no eBay aumentou em 250%.
Marta foi, pois, apenas mais uma das que caiu nas teias da série, que atingiu um número recorde de 62 milhões de visualizações. “Começámos a ver, o bichinho do xadrez voltou lá a casa e eu gosto de a ver focada”, admite a mãe.
O facto de a série ser “um bocadinho diferente” de outras que envolvem xadrez, com uma protagonista feminina, protagonizada por Anya Taylor-Joy, também ajuda a “contrariar o estigma” de que é uma modalidade para rapazes e muito inteligentes.
Ainda por cima, Beth Harmon é “uma menina bonita, mas relativamente normal”, com quem “qualquer uma se pode identificar”. Por isso, Marta gosta “bastante” de ver a série, mas também por “reconhecer algumas jogadas”.
Sabe “o que vai acontecer e porque jogou assim”. “E aquela parte em que ela joga com vários rapazes ao mesmo tempo e consegue fazer xeque-mate a todos fê-la sonhar um bocadinho”, conta a mãe.
Por isso, agora, está de volta aos treinos com a motivação redobrada. “A série cativou-me muito. Achei interessante como é que a protagonista conseguia aprender as jogadas e como as demonstrava”, explica Marta.
Sónia, enquanto docente, capta bem a importância que esta modalidade pode ter para o futuro da filha. “É uma boa série, que potencia as mais-valias do xadrez, como a capacidade de concentração e o aprender de forma lúdica. E também a igualdade de género.”
Empurrão
Em casa de Sara Santos, o xadrez foi uma actividade recorrente nas férias do Verão. O pequeno Lourenço, de seis anos, costumava jogar com o pai, que tem “umas luzes”, mas o surgimento da série foi o incentivo final para colocar, em Novembro, o petiz nos Corvos do Lis.
“Vejo sempre as séries com melhores críticas e esta tinha muito boas. Adorei, mesmo. É excelente, independentemente de as pessoas gostarem ou não de xadrez. Não deixei o Lourenço ver a série, porque tem coisas que não para crianças, mas viu algumas partes dos jogos e perguntou-me quando o levava ao xadrez. E pronto, uma coisa levou à outra”, explica a docente do primeiro ciclo na Freixianda.
O Lourenço também joga futebol no GRAP e se lhe perguntarem de qual gosta mais, diz que gosta dos dois. Duarte Basílio, presidente do clube de Leiria e docente de Educação Física explica que “devia ser um um lema para todos os pais” terem os filhos a praticar uma modalidade mais física e outro mais intelectual, que não puxa tanto pelo físico, mas mais pela “preguiça mental”.
“O xadrez é de extrema importância para as crianças, pois estimula o raciocínio, a atenção, a concentração e a memorização”, completa o docente, que admite estarem a aparecer mais raparigas.
“Nunca tivemos tantas meninas como este ano”, explica. Não sabe se é coincidência, se é efeito da pandemia, mas acredita que Gambito de Dama tem feito um bom trabalho para a visibilidade da modalidade. “O que tem mais piada é ser uma miúda a vingar no mundo do xadrez.”
Ajudou, pois, no combate que os Corvos do Lis travam para quebrar o preconceito de que é um jogo para cromos. “Temos muita malta, porque não tornamos o xadrez chato. Os miúdos têm primeiro de ser cativados, não podemos dar-lhes a teoria toda. Só mais tarde, porque é mesmo necessária.”