“Deitava as minhas filhas quando a mãe me deixava. Muitas vezes, vinha do Porto, onde residia e trabalhava, para as ver e ela dizia ‘hoje não as vês’. E eu voltava para o Porto.”
João, pai de duas meninas, recorda hoje o processo de alienação parental iniciado em 2018, seis meses após o nascimento da segunda filha. Tal como outros pais e mães na mesma situação ficou quase sem contacto e muito pouca presença na vida delas.
A pedido dos visados neste artigo, alguns nomes são fictícios.
“Cheguei a ser acusado de violência doméstica e de abuso sexual da minha filha mais velha. Fui constituído arguido e fiquei, devido a ambas as acusações, com termo de identidade e de residência”, conta.
É um cenário conhecido de outros casos relatados à Associação Portuguesa para a Igualdade Parental e Direitos dos Filhos (APIPDF) onde as partes usam todas as armas ao seu alcance.
A cada duas semanas, sempre à quinta-feira, vários pais e mães de toda a região reúnem-se no edi?ício da Junta de Freguesia de Pombal.
Querem continuar a fazer parte da vida dos filhos, mas não lhes é dada essa oportunidade e têm de esperar que o tribunal estabeleça regras.
O núcleo da APIPDF em Pombal é um grupo informal, um dos três activos em território nacional, além de Lisboa e Porto.
“O que mais magoa é o facto de não sentirmos que conseguimos ser pais. Sempre fui um pai muito presente. Dos banhos, às birras, às noites sem dormir, essas coisas todas. Não poder estar com as minhas filhas e não exercer a parentalidade, foi muito frustrante.”
Luís Couto, um dos facilitadores do grupo de Pombal de Mútua Ajuda para Situações de Alienação Parental, Confl?ito Parental e Desigualdade Parental conta como foi, para si, o processo da regulação das responsabilidades parentais em tribunal.
Demorou dois anos, concluindo sem acordo.
A regulação das responsabilidades parentais foi fixada por sentença, após proposta do Ministério Público.
No caso de João, foi em Novembro de 2019, que se iniciou a residência alternada e, por fim, já a residir no concelho de Pombal, para estar perto das crianças, alcançou o sonho de poder deitar as lhas e acordar com os seus risos, sem que alguém o impedisse de fazer uma carícia nos rostos das filhas.
Tudo poderia ter sido pior se não tivesse tropeçado, no Porto, na expressão “igualdade parental”.
Foi à primeira reunião do núcleo local da APIPDF e abriu o coração.
Descobriu um local onde podia desabafar com outras pessoas a viver a mesma realidade.
Encontrou empatia e amigos a quem pôde falar do fim da relação de três anos e das filhas.
“Quando entramos na questão dos filhos, num cenário de separação, há muita ausência de informação. No meu primeiro pedido de regulação das responsabilidades parentais, fui a tribunal, à conferência de pais – nem sabia como isso se chamava. E o processo foi arquivado.”
João teve de fazer um segundo pedido de regulação do exercício das responsabilidades parentais. É um processo muito longo, e, até chegar a uma primeira regulação provisória, podem passar-se meses.
Enquanto há ausência de regras, normalmente, o progenitor que não reside com as crianças, está ausente das suas vidas.
Prioridade é criar vínculos e não ganhar em tribunal
“Os grupos de mútua ajuda existem para que os pais e mães entendam que, paralelamente ao processo judicial, existe o de vinculação. E é este processo que temos de ganhar. Não é o tribunal. Porque a vinculação é o ?fim da linha, quando os filhos crescem e as coisas passam. É ela que os vai fazer voltar, independentemente do tempo que estamos separados deles”, explica a vice-presidente da APIPDF.
Sílvia Oliveira adianta que os pais chegam à associação a perguntar “como consigo ter acesso aos meus filhos? Quais são as regras? Como consigo criar vínculos com os meus filhos, apesar das limitações e bloqueios?”
Há muitas estratégias, legais e aceitáveis, que se podem usar para manter o contacto, combater a alienação parental e impedir que os progenitores desapareçam da vida dos filhos.
Há quem tenha usado balões para manter viva a memória de um pai impedido de ver os filhos. Há quem tenha deixado cartões de aniversário onde se pode gravar três segundos de mensagem que se escutam quando se abrem, para dizer “amo-te por mim e por ti”.
“Há vários preconceitos que é preciso desmisticar. Não há mal algum em perguntar na escola como está o filho. É normal que os pais e mães o façam, mas há tanta desinformação que, há apenas cinco anos, a resposta quase automática era: ‘queres informação do teu filho? Pergunta ao encarregado de educação”, conta Luís Couto, exemplicando com o caso de progenitores que, não sendo a semana de estar com os filhos, se cruzam com eles e mudam de lado da rua.
Julgam que o contacto lhes está vedado.
O facilitador do grupo de Pombal ainda se lembra como foi à primeira reunião muito frustrado, muito zangado com tudo e com todos, a sentir que toda a gente estava contra si.
“Tornamo-nos nas pessoas mais maçadoras do mundo, quando nos separamos, porque só conseguimos pensar nisso. Envolvemos a nossa família e ela toma as nossas dores e é arrastada para o confl?ito”, admite.
Os familiares tentavam ajudar e diziam-lhe que, quando as meninas fossem grandes, o procurariam.
“É a pior coisa que se pode fazer. Se não lutarmos para criar vínculos, os filhos passam a ser o objecto de alienação e, mais tarde, não querem falar connosco. Sofrem traumas constantes, pela ausência do pai e são manipulados a acreditar nessa imagem”, adverte Luís Couto.
“O sítio onde mais aprendi foi na PSP de Pombal. Quando era impedido de ver as minhas filhas, passava pela esquadra e fazia um aditamento ao processo. Por vezes, o agente de serviço não aceitava e eu voltava noutro dia. Ao nono aditamento avisaram-me que tinha de associar o NPP, que é o número do processo policial, ao NUIPC, que é o número único de identicação criminal, o número do processo, caso contrário, aquilo não teria qualquer efeito e não constituiria prova. Escrevia uma linha. ‘Hoje, tentei ver as minhas filhas, não consegui. Vim embora’ E era só isto.”
Os grupos de ajuda servem, muitas vezes, para relativizar e aprender aquilo que não se deve fazer.
“As asneiras que não devemos cometer, quando não temos competência emocional para tomar decisões, mais do que aquilo que devemos fazer, porque cada caso é um caso. Muitas vezes, encaminhamos as pessoas para ajuda psicológica, terapia e acompanhamento”, sublinha Sílvia Oliveira.
Foi o que aconteceu a Joana, que participa no grupo de Pombal. Começou a ir ao psicólogo, mas agora é seguida na Associação Mulher Século XXI, em Leiria.
“São uma grande ajuda para lidar com a minha situação de alienação parental. Comecei a sentir uma pressão tremenda, uma revolta do meu filho para comigo, certas atitudes já desafiantes, próprias da pré-adolescência, mas reforçadas com as jogadas psicológicas que começaram a ser feitas.”
Uma vitória chamada “residência alternada”
Várias coisas mudaram nos últimos anos, devido ao trabalho da associação. Por exemplo, a “residência alternada” era uma figura que não constava no Código Civil Português, embora existisse no ordenamento jurídico, por via da doutrina e jurisprudência dos tribunais.
Após uma petição iniciada pela APIPDF a pedir clarificação e a introdução da presunção jurídica da residência alternada, esta passou a ser uma ferramenta na garantia de contacto constante dos filhos com ambos os progenitores, garantindo um desenvolvimento emocional e cognitivo saudável.
E a verdade é que, geralmente na separação com filhos, não há confl?ito.
Segundo a vice-presidente da associação, o alto confl?ito, com falsas denúncias, con?flito permanente durante um determinado período ou impedimento de estar com membros da família, é cerca de 4% do total.
“As residências alternadas têm um número superior, pois, mesmo antes da nossa petição, elas eram informais. Mas há diferenças nas várias comarcas do País. No distrito de Lisboa, o processo é cada vez mais comum quando há separação.”
E há situações onde é a Justiça o entrave aos acordos realizados entre os progenitores.
Na associação, há relatos de procuradores que recusaram acordos porque “a criança tem de ter um mundo e não dois. Pode ver o outro progenitor ocasionalmente para manter os laços.”
O resultado?
“A parte que ficou com a tutela apercebeu-se que tinha um poder que, até então, não sabia que tinha e a outra parte nunca mais viu a criança”, alerta Sílvia Oliveira.
Alienação parental não é questão de género
Ao contrário da crença generalizada de que há mais homens a sofrer de alienação parental, este é um problema que afecta ambos os sexos.
“Se o papel da mãe, continua a ser de cuidadora e do pai, provedor, transversalmente, nas comarcas em Portugal, há uma maior entrega da residência às mães, é normal que mais homens sofram de alienação e confl?ito parental grave e casos de falsas denúncias paralelas aos processos. No entanto, tal não está intrinsecamente ligado com a questão de género. Acontece com homens e mulheres”, garante a vice-presidente da APIPDF.
Eduardo, que também frequenta o grupo de Pombal, diz que há outro aspecto poucas vezes abordado, mas igualmente importante.
Há homens em circunstâncias de alienação parental, que se vêem numa situação onde o poder está na mão da mãe, as juízas são mães, as psicólogas são mães, as técnicas da segurança social são mães.
Todas são mulheres.
“Isso causa revolta e frustração, a maioria das vezes injusticada.”
Entram em depressão, deixam de fazer parte da solução, e incompatibilizam- se com todos.
“Ficam numa ilha. Em resultado disso, como está a decorrer um processo de responsabilidades parentais, auto-sabotam-se. Há uma mãe que lhes faz acusações graves, por vezes de violência doméstica ou de molestar sexualmente os filhos e o comportamento de revolta, causado por um sentimento de que está tudo decidido contra si, não é abonatório.”
Por vezes, até nos grupos de ajuda mútua, alguns homens recusam-se a participar, quando a sessão é facilitada por uma mulher.
“No meu caso, só tenho bem a dizer da Justiça e sempre lidei com mulheres. Procurei o grupo quando estava desesperado, por indicação de amigos e senti conforto. Consegui relativizar e consegui perceber onde estava. Entrei pela porta a pensar que o meu problema era o maior do mundo e saí a achar que talvez não fosse assim tão mau. A partir do momento que o problema ganha gravidade, a nossa visão começa a ser em túnel”, adverte Eduardo.
No grupo de apoio, o túnel pode chegar ao fim e há cabeçadas que se conseguem evitar devido à partilha de quem já as deu.
Evitar advogados especialistas em litigância
Luís Couto e Sílvia Oliveira aconselham quem esteja a passar por alienação e confl?ito parental grave a procurar advogados que promovam consensos e pontos de encontro e não a litigância, porque ‘vale mil vezes um mau acordo do que um não acordo’.
“Procurem um advogado com experiência, que não viva de explorar o confl?ito. Se só fazem Família e se há consenso na primeira conferência, os honorários acabam naquele momento”, faz notar a vice-presidente da associação.
A responsável chama igualmente a atenção das autoridades para outro problema grave: “não pode haver pais e mães falsamente denunciados por abuso sexual, para afastar o filho do progenitor, sem consequências no futuro”.
O INE faz a contabilização dos divórcios em Portugal desde 1960 e os números mostram que o valor só começou a crescer, em 1980.
Em 2020, primeiro ano da pandemia, houve 91,5 divórcios em cada 100 casamentos.
Segundo a Pordata, devido à Covid- 19, o número de casamentos foi muito mais baixo do que nos anos anteriores e pode ser essa a explicação.
Em 2021, ainda em pandemia, o número de divórcios já tinha baixado para 59,5 divórcios em cada 100 casamentos.
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