Possuidos pelo espírito de Gil Vicente, Rui Pedro e Mafalda roubaram o leme das mãos de Caronte e fazem-na rumar para margens mais idílicas, desenhadas a letras e ilustração
Em Dezembro, Leiria vai conhecer, pela pena de Mafalda Brito e desenhos de Rui Pedro Lourenço, a história do Menino do Lapedo, que se cruza com a da própria História da espécie humana.
Será o segundo de uma colecção com co-editoria da autarquia de Leiria e o sexto com a chancela da editora independente Barca do Inferno, de Leiria. O livro chega a tempo da celebração do 20.º aniversário da descoberta arqueológica no Vale do Lapedo e responde a algumas questões que, com toda a certeza, captarão o interesse do público.
Como seria o Vale do Lapedo há 25 mil anos, quando a criança que os cientistas e arqueólogos apelidaram como "Menino do Lapedo", lá viveu? Como seria a sua vida da família e a da restante tribo?
"Há alguns temas interessantes à volta deste assunto. Por exemplo, o ritual funerário, no enterramento daquela criança, permite-nos perceber que aqueles indivíduos teriam já muitas mais coisas parecidas connosco do que se poderia supor. Além disso, há a questão da miscigenação entre o Homem de Neandertal e o Homo Sapiens, o homem anatomicamente moderno", refere Mafalda Brito, autora dos textos.
O primeiro livro desta colaboração partiu da exposição Nós, patente no m|i|mo – Museu da Imagem em Movimento, em Leiria, que foca o quadro com o mesmo nome da autoria do artista plástico Lino António.
Nele, o criativo natural da cidade do Lis e antigo director da Escola António Arroio, retrata o seu círculo de amigos mais próximos; Narciso Costa (1890–1969), António Varela (1902–1963) e Luís Fernandes (1895–1954), que haveriam de deixar uma forte influência nas artes e artistas do século XX.
Mafalda e Rui Pedro contam a história dos quatro e aproveitam para ir dando algumas lições sobre a Leiria do ano de 1923, data em que o quadro foi pintado. É assim que se podem encontrar textos sobre a chegada da electricidade à cidade – bastante cedo no século XX -, sobre as torneiras na cidade ou o primeiro telefone.
Obras no Plano Nacional de Leitura
A Barca do Inferno zarpou para a edição com O Homem da Gaita, há seis anos. Rui Pedro procurava uma “história interessante” para transformar ilustração, com o intuito de enriquecer o seu portefólio.
"Conhecia os versos da canção de Zeca Afonso, de que os Peste&Sida até tinham uma versão, e pensei que seria interessante transformar aquelas palavras em ilustrações", recorda o autor. Como publicar através de uma editora se revelava um verdadeiro espartilho à liberdade criativa de Mafalda e Rui Pedro, resolveram atirar-se de cabeça num projecto de crowdfunding e serem eles a editar o volume. "Pudemos escolher tudo; o papel, o formato, a capa."
A 5 de Outubro de 2012, era apresentado esse primeiro volume. Seguiu-se o conto O Nariz, do russo Nicolai Gogol, um texto adaptado, que contou com a tradução de Tânia Simões. Os dois livros fazem, hoje, parte do Plano Nacional de Leitura, e O Homem da Gaita já está na sua segunda edição.
"Quando o primeiro volume foi lançado, não pensámos logo que iríamos ter uma editora e que nos lançaríamos na aventura de publicar livros", recorda Mafalda. Mas, com a marca registada e com o passar do tempo, apareceu a possibilidade de editarem outros títulos.
Desde o final do ano passado, que a Barca do Inferno faz o seu melhor para navegar a favor da corrente e em águas calmas. Os livros com a chancela da casa de Leiria podem ser encontrados no Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian, nas livrarias e museus de Leiria, no sítio da editora na internet, e em várias autarquias de Portugal, com quem a editora está a trabalhar.
Peças de puzzle
Ainda existe a ideia de que os livros ilustrados são coisa de criança? Sem generalizar, Rui Pedro entende que sim. "Queremos que os nossos livros sejam para todos. Pensamos sempre nas crianças, porém, os livros têm vários níveis de leitura e, cada um, apreende o que faz mais sentido para si."
Nos livros da Colecção Os Artistas Portugueses do Século XX, por exemplo, os editores, que também são os autores, explicam que há vários detalhes que escaparão a uma criança de seis ou oito anos, mas que, mais tarde, irão encaixar como peças de um puzzle.
"Temos livros que nos deram em criança, esquecidos numa estante em casa, e, aos 14 anos, quando temos de fazer opções na escola, voltamos a encontrá-los e poderá haver um, sobre um pintor, que pode fazermos optar por um caminho no qual nem sequer estávamos a pensar", diz o ilustrador.
Um quadrado negro ou um urinol são arte?
Durante o processo criativo admitem que o trabalho de um influencia o do outro. A escrita de Mafalda orienta Rui Pedro e as ilustrações deste levam-na a rasgar novos rumos para aquilo que coloca no papel. "Sou eu quem, primeiro, começa a pensar no livro, na forma, no guião, naquilo que faz sentido no seu início", diz a editora.
Nos dois primeiros livros da Colecção Artistas Portugueses do Século XX, que abordam Amadeo de Souza-Cardoso e Helena Almeida, preferiram focar-se na obra e não na biografia dos criativos.
Desde o início, exploram a questão da definição daquilo que é a “arte”. As ilustrações de Rui Pedro exploram o assunto com a ajuda de Picasso ou d’A Fonte, a famosa obra de arte de Duchamp.
“Será um quadrado negro uma obra de arte? Malevich diz que sim… foi um processo criativo difícil, porque eu tinha de escrever o texto, antes de as obras estarem reproduzidas. Por isso, discutíamos muito se fazia ou não sentido abordar esta ou aquela obra no texto", conta Mafalda.
Foi assim que a cor azul ganhou posição central na narrativa acerca de Helena Almeida. "A ilustração reproduz a ideia de uma das peças da artista. Mas, esse conceito já não funciona no livro sobre Amadeo", afirma Rui Pedro.
A colecção irá ter, para já, mais dois volumes, mas está nos planos da Barca do Inferno explorar [LER_MAIS] a obra de outros autores. A linha editorial é algo que não rouba muito tempo aos pensamentos dos editores.
Não obstante, os temas ligados às artes – música, dança, artes plásticas – serem alvos preferenciais das obras publicadas. "São assuntos que mexem muito connosco, que nos interessam e que estudámos. Não sei se temos mesmo 'uma linha editorial'", admite Rui Pedro e adianta: “se formos honestos no nosso trabalho, no final, juntamos as ideias e encontramos o caminho que, no início, nos era desconhecido."
Pragmática, Mafalda explica que, nas suas cabeças, há sempre o objectivo primordial de abordar temas novos. "Há muitas coisas no mercado a serem feitas com muita qualidade, mas entendemos que há ainda espaço para outras que, apesar de tudo, são diferentes e trazem algo de actual."
Para alcançarem o objectivo, forçam-se a ser os primeiros espectadores e os mais críticos, daquilo que fazem. “Jamais editaríamos algo de que não gostamos", asseguram.
Mafalda Brito
Natural de Leiria, formou-se em Engenharia Biológica e chegou a trabalhar na área, porém, o chamamento das artes foi mais forte e deixou aquela actividade para se dedicar ao estudo da História de Arte. Após concluir essa licenciatura, enveredou por um mestrado em Ciências da Arte, com uma dissertação sobre o artista plástico Fernando Calhau. Depois disso, estagiou no Museu Ingres, dedicado ao pintor do século XIX, em Montauban, perto de Toulouse, França.
Rui Pedro Lourenço
Estudou Pintura no Arco, foi cartoonista no JORNAL DE LEIRIA, trabalhou em livrarias, ilustrou livros e manuais escolares para editoras como a Porto Editora e fez exposições de pintura em nome próprio. No seu trabalho artístico, aborda várias técnicas. Utiliza tintas, lápis de cor ou colagem, mas, sublinha que as opções criativas que faz dependem da mensagem que pretende passar. "Não tenho uma grande preocupação em fixar um estilo ou fórmulas." Também é natural de Leiria.