Por Nuno Granja
nuno.granja@hadoc.pt
A cultura da (des)informação, assente no estrépito da novidade e agitada pela economia dos ratings e das estatísticas, catapulta para a ribalta, periodicamente, temas (necessariamente) recentes, com sublinhados de “prioritário” ou “obrigatório”, assim entendidos enquanto derem lugar a parangonas apelativas, venderem tempo de antena publicitário ou gerarem tráfego no mundo virtual.
Não é, presentemente, o caso do conflito na Síria. Dirse-ia, inclusive, que a grande ameaça do extremismo islâmico que, há bem pouco tempo, fazia refém o mundo, deixou de ser uma questão a ter em conta, mas a dura realidade é que as questões geopolíticas e sociais, e o seu impacto, não se medem pela bitola da sociedade de informação e têm tendência a ser mais fluídas, persistentes e intrincadas do que os três minutos de abertura do telejornal deixam perceber.
Quando, em 2017, Talal Derki apresentou publicamente Filhos do Califado, e a equipa do hádoc teve a possibilidade de assistir a uma das primeiras exibições públicas deste filme, a situação era, no entanto, bastante diferente da atual.
A Síria dominava o panorama noticioso e as atenções mediáticas, congregando uma boa parte dos esforços de solidariedade do mundo Ocidental. Nascido em Damasco, ainda que radicado há alguns anos em Berlim, Derki teve a clarividência de entender que o foco de atenção acabaria por se desviar do seu país natal. Por conseguinte, era crucial que a abordagem do seu filme à questão da guerra e da radicalização fosse tal, que persistisse ao desinteresse do circo mediático e ao surgimento de um novo facto noticioso.
No seu entender, a guerra é vista, pela maioria, como uma partida de xadrez onde os eventos ocorrem como se tivessem lugar num mundo paralelo. Contrariar essa tendência implicaria estabelecer uma ligação pessoal entre os protagonistas do filme e o público. Entendeu ainda que a visão das crianças envolvidas no conflito, no seu modo infantil de olhar o mundo, seriam a única possibilidade de navegar no meio da loucura da guerra e permitir ao mundo alguma esperança.
Filhos do Califado é o resultado dos cerca de dois anos e meio que Talal Derki viveu com a família de Abu Osama, um dos fundadores e líderes da Frente al-Nusra (o braço armado da Al-Qaeda na Síria). Ateísta, Derki levou, no entanto, ao longo desses dois anos e meio, a vida de um “bom muçulmano” – como ele próprio descreve -, rezando todos os dias ao lado de Abu Osama e cumprindo os preceitos religiosos, até ele próprio ser considerado um elemento do núcleo familiar. Esta proximidade permitiulhe acompanhar não apenas o patriarca mas também os seus filhos, nomeadamente os mais velhos: Osama, de 13 anos e Ayman, de 12.
Abu Osama é em partes iguais um pai dedicado e um especialista em ataques à bomba e desmantelamento de minas. Fervoroso crente numa sociedade islâmica sob a lei da Shari’ah e no Califado, não hesita em submeter os filhos ao treino militar num campo jihadista para jovens, e estes, que veem no pai um exemplo a seguir, obedecem cegamente, calando a sua vontade e os seus lamentos. Osama não esconde o peso da responsabilidade de ser o primogénito e a necessidade de ser também ele um exemplo para os irmãos. Apenas Ayman, claramente mais sensível, vocaliza a tristeza de ter de abandonar a escola.
Apesar da proximidade e envolvimento do cineasta com os protagonistas, as opções tomadas ao nível da realização e edição proporcionam, ao longo de todo o filme, uma ideia de distanciamento relativamente à ação, o que, paradoxalmente, exponencia no espectador uma ligação emocional com o tema.
Filhos do Califado é um documento único e altamente relevante do processo de radicalização. Será, possivelmente, o filme mais perturbador que irão ver nos próximos tempos. E também o mais relevante.
Será um filme que resistirá na vossa memória de forma perene, e ao qual darão por vós a regressar, em conversas avulsas, quando menos o esperarem. Fica aqui o aviso à navegação.
E é um filme que não termina na sala de cinema, pelas sérias questões que levanta. Calados os ecos da guerra e divididos os despojos, o que se espera destas crianças, entretanto adultos? De que forma irá este trauma marcar as gerações futuras, as dos filhos e netos desses adultos? Existirá algum processo de desradicalização capaz de mitigar as consequências de uma infância destruída pela violência?
Texto escrito segundo as regras do acordo ortográfico de 1990