Hoje, Carlos Matos escreve a Alexandra Vieira.
Este é um projecto de troca epistolar, organizado em corrente: 12 pessoas da cidade procedem ao envio de uma carta dirigida a uma outra pessoa que vive num bairro diferente, explorando a cidade como referência, tendo em conta expectativas de um amanhã. O que querem melhorar, o que acham importante conversar, o que é urgente repensar. Abrem uma conversa pública entre pessoas que se conhecem e não se conhecem, mas que partilham o espaço de uma cidade agora.
As Cartas Para Leiria e para o Futuro integram a programação de MAPAS, que decorre em Leiria de 1 a 12 de Julho de 2020, com o JORNAL DE LEIRIA como media partner.
Para acompanhar diariamente, online, no site do JORNAL DE LEIRIA e no site de MAPAS (https://www.m-a-p-a-s.com/).
“Pocariça – Maceira 19 de Junho de 2020
Caríssimas Alexandra Vieira e Leiria,
Quiseram o destino e os astros que vos escrevesse, precisamente, no dia em que faz 26 anos que o meu pai partiu. Por isso não estranhem se sentirem, aqui e ali, alguma tristeza na minha prosa. A perda de alguém que se ama incondicionalmente causa uma dor a que nos habituamos mas que jamais superamos. Sei que a Alexandra sabe o que é isso e que esse é um (dos) “elemento(s)” que nos une.
Nasci em Leiria, no hospital “velho”, mas foi um acaso. Cresci, vivi e estudei sempre perto, mas, à exceção de um ano, nunca em Leiria. Talvez por isso, quando em 1992 ou 1993 “apareci” na cidade, frequentando-a e querendo nela fazer coisas, as pessoas me viram como um “outsider”. A vantagem disso foi que “sendo eu de fora” (e numa visão tipicamente provinciana que, ainda hoje, grassa nalguns sectores por aí) tinha uma “credibilidade inata” perante os outros nas ideias “revolucionárias” que fui implementando. A desvantagem é que, na verdade, eu não conhecia bem a Leiria de então, mesmo que muito mais pequena que a Leiria de hoje. Não tendo crescido na cidade não foi nela que fiz os meus amigos de infância, aqueles com quem temos as primeiras bandas, com quem jogamos à bola, com quem descobrimos tantas primeiras coisas. Foi por isso que, ingenuamente, acreditei, durante muito tempo, que havia um bairro qualquer numa parte da cidade por explorar, cheio de pessoas iguais a mim, a gostarem apaixonadamente das coisas que eu apaixonadamente gostava, tão ávidas de trocar comigo impressões sobre as estéticas e as músicas que eu, avidamente, tinha para partilhar com elas. Mas não. Demorou um pouco a perceber mas percebi, finalmente, que esse bairro, habitado por pessoas que só existiam na minha cabeça, afinal não existia. Esse bairro, ou melhor, esses bairros dessa Leiria conservadora de então, construí-os a pulso com um crer, uma irresponsabilidade e uma paixão inabaláveis que me custaram a vida mas que, indiscutivelmente, me fizeram viver até agora, quase a chegar à idade com que o meu pai partiu.
E chegámos aqui, cara Alexandra e cara Leiria, a um momento que não sabemos se é de chegada se é de partida, se é um fim ou uma génese, se é continuidade ou viragem. Ao contrário de nós, Alexandra, Leiria nunca perde. Sai sempre vitoriosa. Alimenta-se daquilo que lhe damos e nós sabemos quanto ela devora, como é gulosa esta menina.
Mas sempre preferimos vê-la assim formosa, com a pele estimada e olhar brilhante, porém, convém não abusar da sorte, não vá ela sucumbir de enfarte ou diabetes. Há
que continuar a educá-la, com sobriedade e com um sentido cada vez mais apurado de responsabilidade social, como, aliás, tão bem tens feito ao longo de tantos anos, Alexandra. Essa cruzada benemérita que tiveste o privilégio de herdar e que, para nossa sorte, não quiseste só para ti. Corre-te nas veias uma visão que vai além dos muros que circundam as nossa casas. E é por isso que nelas vão habitando e prosperando tanta gente, tanta gente criativa que nos vai alimentando a alma e conferindo (mais) sentido à vida. É um preço justo que vale a pena pagar, não achas Alexandra? E tu Leiria, já viste a sorte que tens?
Desconhecemos ainda qual será a cor do amanhã, o seu cheiro, a sua temperatura, a sua respirabilidade. Desconhecemos também se a vida (social), tal como a conhecíamos até há pouco tempo, voltará a ser como era, com abraços, com beijos, com o toque que nos deleita, com as caras destapadas que nos fazem apaixonar num só olhar, com os brindes que nos deixam ébrios. Sabemos, no entanto, que não podemos baixar os braços, desistir desta demanda que tantos anos leva de construção. Embora não possamos ainda estar juntos, devemos estar mais unidos que nunca. E se há mensagem que eu gostaria de deixar, cara Alexandra e cara Leiria, para os do futuro vindouro, é que nunca desistam. Há sempre um bairro novo cheio de pessoas como nós por descobrir. Se não o encontram, construam-no! Como eu fiz. Como a Alexandra vai fazendo todos os dias. Como tantos fizeram antes de nós.
Despeço-me com estima, cara Alexandra Vieira, acrescentando o meu agradecimento pela tua omnipresença na minha vida “jornalística” e nas construções, algumas utópicas, é certo, que fui erigindo nesta existência.
Obrigado também, Leiria, por seres um polo inspirador permanente que, qual acto ilusionista, parece sempre que nos tiras mais do que nos dás. Mas claro, no fim percebemos que é mais importante dar que receber. Portanto, é um bom contrato o que mantemos!
Por último, quero também mandar um beijinho terno à Maria Miguel que me adocicou o coração com as palavras bonitas que me endereçou na sua carta e, simultaneamente, me avivou a memória de “feitos” que eu já me esquecia fazerem parte da minha “história”.
Atenciosamente,
Carlos António Roldão Matos”
Cartas anteriores:
1. Patrícia Martins
2. Jorge Vaz Dias
3. Hugo Ferreira
4. Maria Miguel Ferreira