“Os doentes não podem ser abandonados nem esquecidos.” O alerta é do ex-bastonário da Ordem dos Médicos (OM), José Manuel Silva, ao JORNAL DE LEIRIA.
Desde que a pandemia se instalou em Portugal, o Ministério da Saúde rapidamente procurou dar resposta aos doentes Covid-19, evitando situações como a que se assistiam em Espanha e Itália, onde médicos foram obrigados a escolher quem vivia e morria, tendo em conta o colapso da resposta do seu sistema de saúde nacional.
Se o País respondeu da melhor forma aos doentes que contraíram o SARS-CoV-2, o mesmo não se pode dizer dos restantes utentes, que viram consultas, cirurgias e exames serem adiados. O acesso aos cuidados de saúde primários tornou-se mais complicado, nomeadamente para os mais velhos, com menos capacidade financeira, de mobilidade e de conhecimento dos meios informáticos.
Pedir receitas ou marcar uma consulta, sobretudo, nas extensões de saúde, tornou-se quase uma aventura.
Em muitos casos, não é possível efectuar uma chamada telefónica e o atendimento presencial acaba por ser recusado, porque os centros de saúde estão a funcionar por marcação.
José Manuel Silva afirma que estamos perante um “sistema a duas velocidades” e “quem está a ser prejudicado são sempre os mais pobres”.
“Se já tínhamos um SNS que antes da pandemia não respondia às necessidades das pessoas, falhou com isto tudo, sobretudo aos doentes não Covid. Deslocou os seus recursos para os doentes Covid e os outros ficaram para trás. Os doentes não Covid perderam voz e estão esquecidos”, critica, ao sublinhar a necessidade de “investir” no SNS ao nível dos recursos humanos, técnicos e instalações.
José Manuel Silva frisa ainda que os cuidados de saúde primários “têm obrigação de responder” às necessidades dos utentes. “Nem é preciso muita coisa. Diria que quase basta contratar telefonistas. É evidente que se o centro de saúde não tem meios técnicos nem humanos para atender muitas chamadas em simultâneo, não consegue responder. As pessoas que têm acesso a meios informáticos, preferencialmente devem comunicar por email para o centro de saúde, que deve dar uma resposta célere.”
Alexandre Santos aguarda por uma cirurgia no Centro Hospitalar de Leiria há vários meses para colocar uma prótese na anca. Por duas vezes, conta, fez toda a preparação, incluindo consulta de anestesia, mas a cirurgia não se concretizou.
“O médico diz que nunca será antes de Dezembro. Tenho muitas dores, não consigo sequer calçar-me. Têm-me medicado, o que já me provocou hemorragias no estômago, obrigando-me a deslocar às urgências. Ao menos passem um cheque-cirurgia para ir ao privado”, afirma ao JORNAL DE LEIRIA.
O Centro Hospitalar de Leiria explica que nunca recebeu “nenhuma exposição ou reclamação deste utente”, informando que “o assunto foi encaminhado para o serviço que o tem acompanhado”.
Tiago Silva fez uma pequena cirurgia a uma fístula, mas o problema não ficou resolvido. Continuou em consultas no Hospital de Santo André para voltar a ser intervencionado. Antes da pandemia reagendaram a consulta para o dia 15 de Abril, que viria a ser suspensa até hoje. “O que é preciso para o Serviço Nacional de Saúde [SNS] funcionar? É preciso reunir todos os advogados de defesa ao consumidor para pôr este serviço a funcionar?”
A pergunta é levantada por Alexandre Lopes, que denuncia, através de um email enviado ao JORNAL DE LEIRIA, a situação que a sua mãe passou. Depois de ter ido ao Centro de Saúde de Ourém foi encaminhada para o Hospital de Santo André, em Leiria, “onde esteve um dia à espera para fazer uma TAC de urgência”.
“Estamos perante um furacão, de maior ou menor intensidade, e como é que nós podemos lutar contra este furacão apenas com o SNS? É extraordinariamente difícil”, disse Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos, numa conferência online, há cerca de duas semanas, citado pela Lusa.
“Eu tenho um cobertor que não consegue tapar-me completamente. Se eu puxo o cobertor para os pés, destapo a cabeça, se puxar para a cabeça, destapo os pés”, exemplificou, ao lembrar que foi o que sucedeu na primeira fase da pandemia. Ou seja, “para tentarmos tapar a cabeça e responder à pandemia, destapamos os doentes não Covid”. “Não podemos (…) darmo-nos ao luxo de destapar, outra vez, a doença não Covid”, sustentou.
Rastreios suspensos
Os rastreios oncológicos à mama, colo do útero e colo-rectal ficaram suspensos quando a primeira vaga da Covid-19 se instalou em Portugal. Se a actividade está a ser retomada aos poucos, o atraso não deixa de ser considerável. O impacto poder-se-á avaliar só daqui a alguns meses.
Rui Tato Marinho, presidente da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia, afirma ao JORNAL DE LEIRIA que desde o início da pandemia chamou a atenção para a necessidade de se manter os rastreios e a realização de exames complementares de diagnóstico, tal como referem as orientações internacionais.
“Tivemos de reduzir a nossa actividade para tentar controlar a pandemia. Fomos muito influenciados por aquilo que se estava a passar em Espanha, Itália e França e tivemos de deixar de fazer os exames não urgentes”, adianta o médico.
[LER_MAIS]Segundo Rui Tato Marinho, no mês de Abril, mais de 90% das colonoscopias ficaram por fazer. “A Covid é muito importante, mas se formos frios e pensarmos que metade das pessoas que morrem de Covid são de lares – com o devido respeito -, significa que não se perderam anos de vida, porque já tinham mais de 80 anos. Uma pessoa com um cancro colo-rectal, com 59 ou 60 anos, perde pelo menos 20 anos de vida se morrer”, constata.
Por isso, o especialista alerta que não se pode atrasar a realização dos rastreios. “Não podemos esquecer que além da Covid temos outras doenças e não podemos descurar esses doentes.” Diagnosticar um cancro no seu início ou em estado mais avançado não é a mesma coisa. Rui Tato Marinho confirma que a doença pode tornarse mais agressiva e até fatal. Este ano, estarão por fazer cerca de 70 mil colonoscopias, número que é extrapolado da venda dos preparados nas farmácias para a realização do exame.
“O País vende cerca de 38 mil por mês. Num dos meses só se venderam cerca de 2600. Não podemos esquecer que todos os anos surgem cerca de dez mil novos casos de cancro colo-rectal. É o cancro que mais aparece. Alguns deles são identificados por rastreio. Se fazemos menos, iremos detectar menos e mais tarde.”
Também José Manuel Silva entende que um “diagnóstico feito mais tardiamente tem consequências potencialmente mortais”, pelo que defende um “maior investimento” no SNS. “Depois deste desinvestimento no SNS e dos recursos que já eram insuficientes para uma única doença, é evidente que o Estado tem de recorrer ao sector social e ao sector privado. Não há alternativa e os doentes não podem ser vítimas do braço de ferro da senhora ministra.”
Vasco Ricoca Peixoto, autor de um estudo realizado pela Escola Nacional de Saúde Pública, afirmou à Visão que se vai começar a “ter aumentos ligeiros na mortalidade, que não ultrapassam o intervalo de confiança, mas que podem significar alteração no acompanhamento e cuidado das pessoas”, nomeadamente pessoas a quem suspenderam rastreios oncológicos.
Também Ana Raimundo, presidente da Sociedade Portuguesa de Oncologia, refere à Visão que “houve uma grande diminuição do número de primeiras consultas”. “A incidência do cancro não reduziu, não está é a ser feito o diagnóstico.”
Em Portugal morreram até 30 de Setembro 79.347 pessoas, das quais 1.971 devido à infecção pelo novo coronavírus. É o pior ano desde 2014. Em igual período de 2019, o número de óbitos era de 75.360.
Tirando os óbitos por Covid, há mais 2.016 pessoas que faleceram por causas naturais, segundo os dados disponibilizados pela Direcção-Geral da Saúde.
No distrito de Leiria, até 30 de Setembro, 4.001 pessoas morreram, número que até é inferior às 4013 mortes registadas em igual período de 2019. Se analisarmos os meses da pandemia, desde 16 de Março (quando foi detectado o primeiro infectado na região) a 30 de setembro, morreram no distrito 2.745, das quais 46 foram por Covid.
José Manuel Silva constata que existe um “excesso de mortalidade relativamente à média dos últimos cinco anos” e afirma que não se explica pelo envelhecimento da população, pois essa tendência “não provoca saltos de um ano para o outro”.
Para o ex-bastonário, os números indiciam que “há gente a morrer [não Covid], o que não aconteceria se não fosse a pandemia”. Uma das razões é a dificuldade de acesso aos cuidados de saúde que piorou com a chegada do SARS-CoV-2.
“A pandemia surgiu em cima de um SNS que já não funcionava. Foi um teste de stress ao SNS, à semelhança do que se faz na banca, e veio revelar que não há capacidade de resposta. Já sabíamos, porque havia imensas listas de espera e dificuldade em aceder aos serviços de saúde”, frisa, evidenciando que este é o resultado de “anos de desinvestimento do SNS”.
Rui Tato Marinho sublinha que só daqui a, “pelo menos, um ano é que se poderão tirar conclusões sobre a mortalidade por causas não Covid”, pois há “um conjunto de ondas de choque que resultaram do terramoto desta pandemia”.
O especialista, director de serviço de Gastrenterologia e Hepatologia no Hospital de Santa Maria, alerta ainda para o receio que existe de alguns utentes em ir ao hospital. Deixam arrastar problemas que podem ser fatais, nomeadamente enfartes do miocárdio.
“Quando se fizer o balanço entre a ditadura da Covid e o outro mundo além da Covid, vamos chegar à conclusão de que se morre mais por outras doenças, como enfarte do miocárdio e cancros”, acrescenta Rui Tato Marinho.