Em Maio, a Rastilho Records, de Leiria, celebra um quarto de século de existência, de música alternativa, de edições raras reeditadas de algumas das maiores bandas do espectro nacional.
No seu catálogo podemos encontrar a discografia de Moonspell, Bizarra Locomotiva, Xutos, Jorge Palma, David Fonseca ou Peste & Sida, entre outros.
Acabados de chegar ao mercado, estão Hermitage, o novo dos Moonspell, e, na sexta-feira, dia 26 de Março, vai chegar-nos às mãos Subterrâneos, o mais recente d’O Gajo.
O trabalho desta editora da cidade do Lis, embora possa ser considerado discreto, faz parte da história da música alternativa nacional, tornando-a numa referência incontornável do final do século XX e início do XXI.
“Para mim, independentemente dos estilos, há apenas dois tipos de música, a boa e a má. E dá-me muito gozo editar a boa!”, diz o responsável e fundador, Pedro Vindeirinho. Embora se dedique à música, foi na palavra e na filosofia que se acendeu o fogo neste rastilho.
“Quando tinha 18 anos, foi preciso comprar o livro Um Discurso sobre as Ciências, do filósofo Boaventura de Sousa Santos, para uma aula do secundário de Filosofia. Precisávamos de 28 ou 29 exemplares e predispus-me a comprá-los para os vender à turma. Foi a minha experiência de venda a retalho”, recorda Vindeirinho, que admite uma “certa inocência” nesse primeiro passo primordial e oficioso.
No seu coração e mente, sente, pouco mudou no espírito e vontade de trabalhar.
“Comecei ligado ao mundo do punk, com bandas como Trinta e Um ou Mata-Ratos, e com o metal e hardcore, que eram e continuam a ser a minha escola.”
A partir desse mês de Maio de 96, começou a compilar, todos os anos, um catálogo em papel, com as mais recentes novidades da música alternativa.
No início, havia uma lista fotocopiada e passada de mão em mão, numa corrente que ia do recreio das secundárias ao circuito alternativo.
Figurar nela, para alguns colectivos locais, era um objectivo ferreamente perseguido. Rapidamente se estabeleceu uma operação de encomendas por correio, ainda antes sequer de haver um site dedicado à venda de música.
“Até 2004, quando o site apareceu, era tudo feito por correio e vendas em concertos. Somos orgulhosamente de Leiria. Estive ligado às bandas da zona, como os Injusticed League, Alien Squad ou os Sarna e ia com eles, quando davam concertos. Crescer numa cidade com uma grande cultura musical e onde existe um Carlos Matos foi um privilégio.”
Em 1999, Pedro fundou a editora e lançou o primeiro disco, dando uma cobertura oficial a todo o trabalho feito desde 1996. Até 2003, manteve a edição de um catálogo em papel por ano.
“Sou um homem feliz”
O início de uma nova etapa na existência da editora aconteceu com um encontro com Paulo Furtado, o Legendary Tiger Man.
“Já nos conhecíamos do tempo dos Tédio Boys e das bandas de Coimbra, e ele convidou-me a fazer o vinil do disco Masquerade. Falar agora de vinil parece banal, porque quase todas as bandas voltaram a editar nesse formato, mas, naquele tempo, era uma coisa muito restrita e só alguns músicos arriscavam fazer edições dessas.”
Pedro e Paulo encontraram-se à beira do Mondego e acertaram agulhas para a primeira incursão da editora da cidade do Lis no vinil. Foi uma das primeiras editoras nacionais a fazê-lo.
“Nestes 25 anos, já vamos com 217 edições… temos o nosso logo ligado a artistas como Jorge Palma ou Mão Morta… Consegui trabalhar com três das bandas que, para mim, são o topo em Portugal; Bizarra Locomotiva, Mão Morta e Moonspell. Sou um homem feliz! Sinto que aconteceu, não porque sou o gajo mais porreiro do mundo, mas pelo fruto do nosso trabalho.”
Outro dos marcos que o editor sente como crucial nesta peregrinação ao mundo da música é a fundação da label Alma Mater, um trabalho feito em parceria com o mentor dos Moonspell, Fernando Ribeiro.
A colaboração com a banda acontece desde 2009, primeiro no merchandising, outra das vertentes exploradas pela Rastilho Records, mas, em 2016, Ribeiro, Vindeirinho e o designer e artista gráfico João Diogo abraçaram outro projecto que, nas suas mentes fazia perfeito sentido.
Pretendiam recolher o catálogo dos Moonspell, reconhecidamente a mais internacional das bandas portuguesas sob a sua própria label. A banda já tinha feito grande parte do trabalho, permitindo a reedição da discografia.
Com o tempo, naturalmente, a Alma Mater foi crescendo e mais artistas se juntaram. Paulo Bragança escolheu-a para o seu regresso ao activo, em 2016. Neste momento, a chancela Alma Mater pode ser encontrada em 27 discos, em formatos que vão do CD ao vinil e cassete.
No arranque deste ano, a etiqueta do eixo Alcobaça-Leiria conseguiu a posição mais alta do top nacional e entradas directas nas tabelas de outros países, com Hermitage, o novo disco de Moonspell.
Os últimos dois anos da Rastilho foram marcados por um burilar interminável e uma afinação da identidade, com menos edições, mas uma maior consciência do trabalho e do cunho como editora independente.
“Com a pandemia, tivemos de adiar alguns planos. Por outro lado, estão a vender-se mais discos. As pessoas não gastam dinheiro em concertos e usamno para os adquirir”.
Após os meses iniciais de indefinição, Vindeirinho percebeu que a pandemia de Covid-19 não iria desaparecer com um passe de magia e iria marcar a actualidade e o quotidiano por muito tempo, pelo que o melhor seria ajustar os planos e avançar para a nova realidade que se desenhava.
Era um risco calculado, refere, e, até agora, a editora e o seu timoneiro não perderam o rumo. “Estamos agora numa aberta um pouco estranha. Ao fim-de-semana, não há concertos…”.
O tempo ainda é de testes ao mercado e aos novos modos de operar. Afinal, ainda só passou um ano e há muito material à espera de ser lançado e músicos a adiar projectos.
“Em Abril, Maio e Junho vai sair muita coisa, porque os artistas perceberam que a situação veio para ficar e precisam de se tentar reinventar, embora não haja uma panaceia para resolver o problema.”
Vindeirinho recorda que os concertos são a principal fonte de receita dos músicos, dos mais alternativos aos mais comerciais, e que as editoras também precisam de espectáculos, para ganharem peso e nome, além de serem um ponto de venda dos discos, no final dos espectáculos.
Neste momento, as vendas concentram-se na internet, embora se tenha tentado algumas opções como o streaming pago, que tendo tido alguma adesão no início da pandemia, acabou por perder o interesse.
“Não me peçam para ir a um concerto, para estar sentado numa cadeira a ouvir uma banda de heavy metal. Vamos ter de aguardar até que as coisas estabilizem.”
Do Dark Side of The Moon ao “factor Lisboa”
Nos primeiros dez anos de existência da Rastilho, Pedro Vindeirinho acumulava o trabalho na editora com o emprego.
Ia a concertos, vendia merchandising e discos, contactava bandas, contactava outras editoras, fechava contratos, fazia mail ordering, andava a mil sem um minuto de descanso.
Um dia teve de optar perante a impossibilidade de conciliar ambos os trabalhos. Escolheu a paixão, deixou o emprego.
A sua paixão, dedicação e vontade férrea de construir algo no mundo da música acabaria por dar frutos e consolidar a posição da editora.
Uma dessas etapas foi o contrato com a Fnac, em 2007.
“A maior parte do vinil à venda nessas lojas chegou a ser nosso!” Mas também arrecadou muitas negas no início.
“Faz parte da vida. Aliás, continuo a levar algumas, mas o trabalho que temos feito ao longo destes anos fala por si.”
O editor explica que acertar a aposta numa banda é uma questão de sintonia e nem sempre se acerta. Mas quando se acerta…
“Comecei a trabalhar com os Linda Martini, logo no início da banda e foi um caso feliz. Percebia-se que iria ser uma grande banda. O mesmo aconteceu com os Capitão Fausto. Claro que houve outras apostas que não correram bem, mesmo com bandas com discos de grande qualidade. Não há fórmulas mágicas.”
Actualmente, reconhece que “a vida está complicada para as novas bandas” e o público tem a sua quota-parte de culpa.
“Por exemplo, nas vendas dos vinis, estão sempre os mesmos no top: Pink Floyd, Beatles e AC/DC. Parece que ainda há pessoas que não têm em casa o Dark Side of The Moon…”
Ter um bom disco, explica, não é suficiente, pois há um importante factor humano a ter em conta, há a sorte e…
“Há um ‘factor Lisboa’. Não quero dizer que só os grupos de lá é que têm sucesso, porque temos exemplos de outras editoras, como a Omnichord Records, de Leiria, que tem feito um trabalho incrível e que consegue furar, mas…”
Igualmente essencial, adianta, é o “clique”.
Aquilo que o editor tem à sua frente tem de tocar e acender algo dentro de si. Nos últimos anos, o mercado da Rastilho mudou.
As multinacionais também começaram a apostar no vinil e tornou-se mais difícil conseguir editar esse formato com o trabalho de bandas mais conhecidas.
O caminho passou a ser a edição de artistas próprios. “Não se pode depender apenas dos outros, porque a torneira pode fechar. Hoje, apostamos no nosso catálogo e temos matéria-prima para podermos caminhar pelo nosso próprio pé.”
Em 2020, a editora de Leiria fez chegar ao mercado Véspera, dos Clã, e os Cruz de Ferro e, em 2021, vai ainda apostar numa edição especial, com box, de Irreligious, de Moonspell, álbum que também faz 25 anos, nos Fogo Fogo, colectivo de Lisboa ligado aos Cais do Sodré Funk Connection, além do novo d’O Gajo e de Hermitage, dos Moonspell, lançado a 26 de Fevereiro.
O futuro, reconhece Pedro Vindeirinho, é uma incógnita, mas a Rastilho Records há muito que se afirmou na cena musical nacional.