Reflexo da sociedade onde estão inseridas, muitas empresas não estão ainda despertas para o contributo que pessoas com deficiência podem dar às suas organizações. Falta esclarecimento, defendem alguns empresários, e faltará ainda o apoio do Estado que poderia dar o impulso necessário à inclusão destes recursos humanos, defendem outros.
Contudo, esse caminho está a ser gradualmente trilhado, graças à visão de alguns empregadores, bem como ao trabalho de sensibilização e de capacitação desenvolvido pelos centros de educação especial.
Patrícia, Nuno, Carlos e Rúben são exemplo de como pessoas com deficiência podem, e devem, ser aproveitadas pelas empresas, fazendo a diferença nos locais onde trabalham.
Patrícia, mãe de todos os morangueiros
Patrícia Bessa, de 29 anos, recorda como começou a trabalhar na Germiplanta, em Monte Redondo. Focada, vai soltando palavras tímidas sem descurar a tarefa que tem em mãos. Limpa e separa pés de morangueiros com mestria e delicadeza. Completou [LER_MAIS]o 9.º ano no colégio Dr. Luís Pereira da Costa, nesta mesma freguesia do concelho de Leiria, e estava em casa sem ocupação até que a mãe teve a iniciativa de saber se os viveiros de plantas, onde também trabalhava, estariam interessados em empregá-la.
A resposta foi positiva e, findo um ano de estágio, Patrícia conseguiu o contrato. Já lá vão seis anos desde o início do seu percurso nesta empresa, onde a colaborada gosta de trabalhar e é querida por todos.
“Limpo morangueiros, envaso ervas aromáticas. Nada é difícil”, conta Patrícia, que aprecia particularmente cactos. Ao seu lado, Ana Paula Marques confirma a habilidade da colega, que, apesar da timidez, lá vai desfiando alguma conversa, quase sempre sobre o trabalho.
Quem não poupa elogios à jovem é Diana Carvalho, responsável pelos viveiros. “É uma trabalhadora cinco estrelas, como todas as outras. Se não fosse nem estaria aqui. Aliás, é a mãe de todos estes morangueiros.”
“É paciente e sossegada”, conta Diana Carvalho. “É diferente, mas nós aproveitamos o melhor de cada um”, prossegue a responsável. No caso da Patrícia, porque tem dificuldades ao nível visual, é preciso colocá-la em zonas e em actividades que não ofereçam risco. Importante é também compreender e saber gerir as suas frustrações, expõe a empresária, que emprega várias pessoas com deficiência. Algumas ainda no âmbito de contratos apoiados de inserção, outras já inseridas nos quadros da Germiplanta. Todos saem a ganhar com a integração.
A Patrícia, por exemplo, melhorou drasticamente a sua capacidade de comunicar e de socializar, repara Diana Carvalho.
Nuno, tratador de cavalos, grande amigo do Zingão
“Dou-lhes feno, faço as camas com serradura e varro a rua. Deixo tudo limpinho”, conta Nuno Pereira, de 23 anos, jovem natural dos Milagres, tratador no Centro Hípico Dom Cavalo, que tem no Zingão o seu grande amigo de quatro patas.
Utente do Centro de Educação Especial, Reabilitação e Integração de Alcobaça (CEERIA), Nuno já tinha colaborado na reprografia da instituição e também já tinha experiência de trabalho no exterior, numa papelaria. Ao centro hípico chegou há quase dois anos. Primeiro fez um estágio e presentemente está integrado através de um contrato que apoia a inserção.
Ao desempenhar “tarefas exigentes do ponto de vista técnico e de muita responsabilidade”, Nuno ganhou “maior autonomia financeira, social, mais auto-estima, até perdeu peso e ganhou massa muscular” constata Miguel Condeço, sócio-gerente do centro hípico, que ao longo dos anos tem recebido vários cidadãos com deficiência.
“São pessoas com sentido de responsabilidade, respeito, humildade, que acatam e respeitam as decisões”, e que têm sentido de humor, salienta o sócio-gerente. Do seu ponto de vista, “há uma carrada de Nunos que poderiam ser muito bem aproveitados”, que assim contribuiriam para as empresas ao mesmo tempo que ganhariam mais independência, saúde física e mental.
Miguel Condeço entende que se mais empresas não dão o passo seguinte, ou seja, volvida a fase da integração apoiada, não inserem estes funcionários nos quadros, é porque ainda não há apoio suficiente à sua inserção. Algumas pessoas têm limitações que as impedem de exercer todas as tarefas, o que implica ter sempre consigo outro funcionário que as execute, constrangimento que deveria ser considerado pelo Estado, repara o responsável.
Nestes casos, defende, o empregador deveria estar isento da “grande carga de impostos”, porque “é mais importante ter pessoas integradas, válidas, a trabalhar, do que mantê-las em instituições, onde por vezes perdem saúde e pesam mais no próprio orçamento do Estado”.
Carlos, cantoneiro e futuro condutor
Quem também conseguiu emprego por intermédio do CEERIA foi Carlos Carvalho, jovem de 28 anos, natural de Cela Nova. Fez formação de jardinagem no centro e, depois de outras experiências laborais nesta área, foi integrado na Junta de Freguesia de Turquel, onde já completou estágio e conseguiu um contrato apoiado para inserção.
Exerce funções de cantoneiro e gostaria de continuar. Faz equipa com Joaquim Madeira, que não se vê como um chefe, mas como um parceiro de trabalho de Carlos. “É educado, sabe falar bem com a população e respeitar o local onde está”, observa Joaquim. Além disso, “é bom profissional, domina as máquinas roçadoras e faz o que lhe pedem na perfeição”.
Carlos tem em Joaquim o melhor companheiro de trabalho, alguém que o compreende e que o incentiva a traçar metas e a cumprir objectivos. A carta de condução é um deles e está no bom caminho. Depois de ter sido aprovado no código, Carlos está a ter aulas práticas.
E quando obtiver licença para conduzir ganhará ainda mais autonomia na sua vida pessoal e no emprego, frisa Joaquim.
Rúben molda o futuro na fábrica de cerâmica
Rúben Rodrigues, de Évora de Alcobaça, tem 44 anos e é operário da Arfai há cerca de 15. Até conseguir integrar os quadros desta fabricante de cerâmica decorativa, de Alcobaça, Rúben saltitou entre empresas de plástico, cartonagem, loiça e reciclagem, onde sempre chegou através do CEERIA. No caso da Arfai não foi diferente, sendo que aqui, pela primeira vez, ganhou raízes que lhe permitem olhar o futuro com optimismo.
“Faço enchimento e desmolde das peças”, explica. “Gosto do ambiente, dos meus colegas e a patroa é excelente”, realça o funcionário, que tem planos para continuar nesta actividade.
Rosa Carlos e Alice Alexandre começaram a laborar na Arfai há 21 anos e desde então já trabalharam com vários colegas portadores de deficiência. “O Rúben é respeitador e tenta cumprir as tarefas que lhe confiam. Consegue ver quando alguma coisa não está perfeita e pede ajuda”, explica Rosa.
Para Alice, “é pena” que outras empresas não empreguem mais pessoas como o Rúben que, graças ao estímulo dos colegas, “tem demonstrando desenvolvimento a vários níveis”.
“É bom para eles e é bom para nós, porque nos leva a ser mais tolerantes”, acrescenta a funcionária.
Carla Moreira é CEO da Arfai, empresa que desde sempre integrou pessoas com deficiência nos seus quadros, iniciativa que lhe valeu o Prémio de Mérito, em 2005, e a visita à fábrica do então Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva.
“Esta foi a causa que abraçámos há quase 20 anos e sinto uma satisfação enorme por poder contribuir de alguma forma para a melhoria das condições de vida de um jovem portador de deficiência”, salienta Carla Moreira.
“A nossa experiência é extremamente positiva, o convívio com os colegas é excelente e faz-nos felizes constatar o quanto contribuímos para uma vida dita normal, que não teriam sem acesso ao mercado de trabalho”, congratula-se.
Questionada sobre o facto de nem todas as organizações contratarem pessoas com deficiência, a empresária realça que, neste processo, são necessárias entidades locais como o CEERIA, que “faz um excelente trabalho junto das empresas, procurando propor jovens que sejam adequados às funções disponíveis”.
Da parte das empresas, “tem de haver forte capacidade de integração destes jovens, procurando compreender as suas limitações, ajustando as funções às suas capacidades sempre que seja possível”.
“Fomos sempre apoiados financeiramente para a integração destes jovens e não encontro falta de apoio nessa matéria. Talvez carecesse de uma maior sensibilização das empresas, contudo terá sempre de existir uma forte vontade da empresa integradora, tem de fazer parte do ADN do empresário”, observa Carla Moreira.
CEERIA abre loja e café para promover capacitação
O Centro de Educação Especial, Reabilitação e Integração de Alcobaça (CEERIA) prepara-se para inaugurar uma loja e um café, que pretendem ser instrumentos de capacitação dos seus utentes, explica José Godinho, presidente de direcção.
“A loja de roupa e de acessórios vai colocar pessoas com deficiência a circular no centro da cidade de Alcobaça. É fundamental que a instituição se desloque para a comunidade e não se feche sobre si mesma”, defende o responsável pelo CEERIA. “Na loja, de modo rotativo, trabalharão três pessoas com deficiência, que depois serão colocadas no centro de reabilitação profissional, já devidamente capacitadas ao nível do saber-estar, do saber-ser e do saber- -fazer.
No café, que irá funcionar nas instalações do CEERIA, o procedimento será semelhante, com duas pessoas direccionadas para o atendimento e uma outra para o serviço de esplanada”, expõe José Godinho.
“Os centros de actividades ocupacionais vão acabar dentro de dois anos, dando lugar aos centros de actividades e capacitação para a inclusão. O CEERIA está, através deste tipo de projectos, a antecipar o processo”, justifica o responsável da instituição, que avança com estes projectos por sua iniciativa, sem qualquer apoio.
“Queremos resolver o problema de inclusão destas pessoas na comunidade. Enfrentamos desafios relacionados com o desenraizamento social e o isolamento, défice de desenvolvimento intelectual e problemas psicossociais. Muitos dos nossos utentes vivem em aldeias com fracas acessibilidades e têm progenitores com idade avançada e parcos recursos económicos”, realça José Godinho.
É neste contexto que são fundamentais os projectos de capacitação, como a loja ou o café, que servem de rampa de lançamento para a integração. “Passámos de 178 utentes integrados no mercado de trabalho, em 2021, para 194 nestes primeiros meses de 2022. Muita desta integração é feita ao abrigo da medida Emprego Apoiado em Mercado Aberto, que permite ao empresário receber uma compensação monetária (de 20% a 90% do salário) durante os anos em que mantiver a pessoa no posto de trabalho”, remata o presidente.