A vida corria bem. Estava a terminar a universidade, mas de repente começou a sentir uma tristeza desmedida, uma apatia dilacerante, desmotivação extrema e a perder a vontade de viver. “Deixei de querer fazer até as actividades que mais gostava. Estudar era um sacrifício enorme. Isolei-me de tudo e de todos. A minha única vontade era estar deitada no sofá, só a existir.”
Os sentimentos de Ana (nome fictício), 24 anos, são transversais a muitas pessoas que sofrem de depressão, uma doença mental do século XXI. A Organização Mundial de Saúde já a reconhece como sendo, globalmente, a principal causa de incapacidade. Linda Vaz, presidente da delegação Regional do Centro da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP), adianta que, segundo os últimos estudos, a depressão afecta cerca de 50 milhões de pessoas na União Europeia, e Portugal ocupa a quinta posição entre os países com mais casos.
Cerca de 8% dos portugueses estão diagnosticados com essa perturbação. “São dados muito voláteis. Sabemos que ainda há muitas pessoas que não têm acesso a este tipo de ajuda especializada e a uma avaliação”, adverte.
Apesar do número de pessoas que sofre desta doença, o estigma nas doenças mentais ainda está longe de ter desaparecido. Na sociedade ainda é comum ouvir comentários como: sofrer de depressão ou até de ansiedade é ‘um luxo, um capricho ou preguiça’, ‘não tenho tempo para essas coisas’ ou ‘tens de ter força’. Ana admite que, em casa, a mãe chegou a dizer-lhe: “tens de contrariar essa vontade, muda a maneira de pensar”.
“Quem não sente o que nós sentimos com uma depressão não consegue entender. Eu sofria por estar assim. Não queria sentir o que sentia, mas é algo que não controlamos, por muito que se queira”, sublinha.
Cláudio Laureano, director do serviço de Psiquiatria do Centro Hospitalar de Leiria, concorda com a doente. “Não tem nada a ver com questões de fraqueza nem com o carácter de uma pessoa. A depressão é uma condição de saúde mental e não é um defeito do carácter. A pessoa não escolhe ficar deprimida. A depressão só é vista como uma fraqueza devido ao estigma que a sociedade colocou e nada tem a ver com a força mental, emocional ou física”, garante.
O especialista reforça que a depressão é “uma doença extremamente séria e incapacitante e, tal como a ansiedade, não vai desaparecer sozinha”. Tanto uma como outraa, “se não forem tratadas e receberem os cuidados necessários podem-se tornar extremamente graves”, com “consequências ao nível da saúde, do sono, da alimentação, com abuso de substâncias, podendo culminar em comportamentos auto-lesivos e no suicídio”, alerta Cláudio Laureano.
O psiquiatra explica que a “depressão é causada por um desequilíbrio a nível químico cerebral” e que “ninguém a tem por vontade própria”. Outra falsa questão é a dependência que os anti-depressivos provocam, o que é “completamente errado”.
“Há medicamentos que desenvolvem potencial habituação e dependência, mas não é o caso dos anti-depressivos”, assume, referindo que os fármacos não são a única solução para o tratamento da depressão e ansiedade. “O tratamento destes doentes inclui alterações do estilo de vida e psicoterapia”, exemplificou, reforçando, contudo, a importância “fundamental” do tratamento farmacológico “para o sucesso da recuperação do doente”.
A ansiedade é também uma perturbação em crescimento, tendo uma prevalência de 16,5%, em Portugal, entre as doenças mentais, segundo dados da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental. Distinguindo a perturbação da ansiedade da ansiedade dita normal (quando se trata de um fenómeno passageiro), Cláudio Laureano salienta que esta doença “não é uma característica da personalidade” e causa um enorme sofrimento ao paciente, impedindo-o, muitas vezes, de ter uma vida normal. O simples facto de entrar numa auto-estrada ou conhecer novas pessoas pode ser insuportável.
“A ansiedade não é ser tímido”, mas ter um medo excessivo de enfrentar determinadas situações, com sintomas incapacitantes.
Cláudio Laureano adianta que acontece com alguma regularidade chegarem à consulta doentes, após meses ou até anos a procurarem diferentes especialidades que explicassem sintomas cardíacos ou gastroenterológicos. É junto do psiquiatra que encontram o tratamento para o mal-estar físico e que estaria a camuflar os problemas mentais. “Há um risco de aumento em mais de 30% da doença física quando relacionada com a doença mental”, lê-se no estudo O impacto da saúde mental na saúde física, publicado na terça-feira pela OPP.
Médico de família: uma porta aberta
O médico de família é muitas vezes a porta de entrada para o diagnóstico e acompanhamento das doenças mentais, sobretudo a depressão e a ansiedade. Ana recorreu à sua médica de família quando percebeu que não conseguia lidar sozinha com o que estava a sentir. Foi medicada e iniciou psicoterapia. No entanto, as ideias suicidas que lhe surgiram, levou a médica a encaminhá-la para um psiquiatra. Sem tempo para esperar por uma consulta – que aguarda há cerca de cinco meses – no hospital de Leiria, a jovem foi ao privado. Cerca de um ano depois, continua a psicoterapia.
“É um caminho que estou a percorrer, mas sei que vai ajudar muito.” Margarida Sá nota um aumento da procura de ajuda desde a pandemia da Covid-19.
“A situação agravou-se e aparecem muitos jovens, sobretudo, com problemas de ansiedade. Não sei até que ponto está relacionado com o facto de terem passado a sua adolescência em confinamento, mas não me lembro de ter tantos jovens na consulta”, adianta a médica de Medicina Geral e Familiar de Leiria.
Sentimentos de tristeza, ansiedade, dificuldade em dormir ou não querer falar com ninguém são algumas das queixas que lhe entram no consultório.
Margarida Sá apela a que as pessoas procurem ajuda, salientando que o médico de família pode resolver as situações sem encaminhamento para o psiquiatra. “Se entender que é um caso grave, vou encaminhar. Mas o acompanhamento da maioria das pessoas pode ser feito nos cuidados de saúde primários”, reforça.
O grande problema, constata, é a falta de psicólogos no Serviço Nacional de Saúde (SNS). “Para todo o Centro de Saúde Arnaldo Sampaio existe um psicólogo, que tem de dar resposta a mais de 20 mil utentes. Quem não tem condições financeiras para ir ao privado é muito difícil fazer psicoterapia”, afirma, revelando que a solução de recurso tem sido o acompanhamento por uma enfermeira especialista em saúde mental. Linda Vaz sublinha que a resposta da psicologia no SNS “continua a ser uma batalha da OPP”.
“Tivemos um concurso para 40 especialistas que demorou uma eternidade. Quando chegaram estes 40, entretanto, o número de pedidos tinha aumentado drasticamente”, constata, realçando a importância de abrirem mais lugares no SNS para psicólogos, até porque a “psicologia é uma ferramenta fundamental na saúde”. A psicóloga reforça que uma “terapêutica medicamentosa nunca deve estar separada de uma intervenção psicoterapêutica”.
Daí a importância da “complementaridade”. Os medicamentos ajudam à “estabilização e recuperação da saúde física, como a higienização do sono”.
“Mas a psicoterapia faz um trabalho mais exaustivo”, contribuindo para que a pessoa reconheça o estado de saúde e “utilize ferramentas que são trabalhadas” em cada sessão, o que vai diminuir uma futura reincidência.
Pobreza vs problemas mentais
As doenças mentais atingem qualquer idade e estrato social. No entanto, os especialistas admitem que a pobreza pode ser um “catalisador” para o aparecimento de depressões ou ansiedade. “Está provado que a pobreza é um factor de risco para a saúde mental, a vários níveis. Antes desta fase sócio-económica tão crítica já tínhamos situações de pobreza extrema, muitas delas associadas à falta de escolaridade e de acesso a serviços de saúde. Estes são indicadores de risco, porque as pessoas ao não terem informação, não reconhecem caminhos de procura de ajuda. Aumenta o risco de doença mental e do estigma”, salienta Lídia Vaz.
Cláudio Laureano acrescenta que não são as situações económicas que fazem a depressão aparecer, “mas facilitam o aparecimento e o agravamento dos quadros”. “A pobreza limita-nos uma série de oportunidades, o recurso a cuidados de saúde e ao próprio apoio social e familiar. Associada a situações profissionais pouco favoráveis, é um catalisador muito grande”, frisa. Evitar que a tristeza, a ansiedade ou o stress do dia-a-dia se tornem patológicos obriga a uma aposta na prevenção. Lídia Vaz avança que o segredo pode passar por “viver a vida com a simplicidade que ela traz”.
“O dia tem 24 horas para todos. Tenho de definir o que é realmente mais importante e preocupar-me com aquilo que posso efectivamente resolver. Queixamo-nos que no nosso trabalho exigem demasiado de nós, mas acabamos por ser muito exigentes connosco, com os nossos filhos, com a nossa imagem, com o nosso estatuto ou com aquilo que já deveríamos ter atingido. Baixar as expectativas à realidade pode resultar”, aconselha.
Cuidar da saúde física, da alimentação e fazer uma boa gestão do tempo são também conselhos que os especialistas deixam, alertando, contudo para a procura de ajuda imediata, sempre que necessitar.