“Encontrá-lo em Portugal já é uma raridade”, garante João Santos. “Uma dádiva dos céus”, reforça. “Quando cheguei à capela, fiquei parvo”. No convento dos franciscanos de Montariol, em Braga, “parado há décadas, encostado”, um orgue-celésta Mustel, o mítico modelo 11, construído no ano de 1898. “Que é, digamos, o santo graal dos harmónios de arte”.
Para os entendidos, “não há nada como Victor Mustel”, assinala o organista titular da Sé de Leiria, sobre o conceito desenvolvido pelo construtor francês desde 1853 e depois pelos descendentes até 1931. “São considerados os Stradivarius do harmónio”.
Do modelo 11 de 1898, segundo João Santos, só se conhecem 300 exemplares e o do convento de Montariol abriga-se agora no ateliê fort’Expressivo que o coleccionador mantém nos arredores de Leiria, com originais do século XIX, e para o qual procura mecenas ou patrocinadores dispostos a financiar o restauro de instrumentos raros (ou mesmo únicos) em Portugal. Os da marca Mustel ainda hoje “têm muito mais procura” do que os restantes e “em França são um luxo”.
Aos poucos, no fort’Expressivo, está a consolidar-se “um refúgio” dedicado ao harmónio. “São resgates, aliás, essa é uma das minhas missões, neste momento”, conta o músico ao JORNAL DE LEIRIA. Salvar o que corre o risco de se perder, restaurar quando possível, valorizar em projectos artísticos com apresentações ao vivo para o público especializado e não especializado (o que sucedeu em Dezembro, por exemplo, em Santarém).
Veja o vídeo (orgue-celésta Mustel, modelo 11, 1898):
João Santos começou a colecção com um Mustel descoberto através de um anúncio no Facebook, um modelo 2, de 1899, adquirido por John Edward Quayle e doado por um neto do compositor a uma capela metodista que cessou actividade, na Ilha de Man, no Reino Unido. O achado de Braga, “é uma incógnita”, o trajecto. Entretanto, trouxe de França um harmónio Beaucourt (c. 1865) que pertenceu ao pintor Marcel Féguide e um piano Erard de 1912 (que chegou a ser da mezzo-soprano Suzanne Boyer Lafory), de Inglaterra um harmónio Trayser (c. 1870) e da Holanda um reed organ Van der Burg (anos 50 do século XX).
Embora “mais complexo” do que os parentes próximos, o harmónio tornou-se “muito popular” quando Alexandre-François Debain depositou a patente, em 1843. Surgiu com novos timbres para a música de câmara e “foi importante, porque, de repente, os músicos tinham na ponta dos dedos e num instrumento de tecla a capacidade de fazer expressão como um violino ou como um clarinete”, explica João Santos. “É como ter um pulmão à nossa disposição”. O efeito quando o ar passa pelas palhetas livres, que vibram, permite um registo mais forte ou menos forte. “A partir do momento em que começo a dar ao fole tenho o som que quero”.
Modelos como o Mustel 11 – harmónio completo no teclado inferior e celesta no teclado superior – “são muito difíceis de operar”, mas “bem utilizado, é uma autência orquestra”, avalia o organista da Sé de Leiria. “Caríssimos”, à época, “não eram acessíveis a toda a gente”.
Com o tempo, e o aparecimento dos primeiros dispositivos electrónicos, os harmónios – em alguns casos “expandidos do ponto de vista técnico e musical para serem usados apenas em concerto” e que “não eram vocacionados para a liturgia – passaram a “enfermar de alguns mitos”, diz João Santos. “As pessoas pensavam que eram para as igrejas que não tinham dinheiro para um órgão de tubos”. Ele próprio os considerava datados, admite. Até que, em 2020, um convite para actuar no Porto com a orquestra da Casa da Música e tocar uma peça de Franz Schreker em harmónio de arte despertou a “paixão” por “instrumentos históricos”. E, em especial, pelo harmónio.
O plano passa por reacender a “memória colectiva” e provocar “uma espécie de renascimento” do harmónio, que, “hoje em dia”, tem um “valor de mercado muito baixo”. E, sugere o especialista, há relíquias que são provavelmente atraentes para a investigação académica pelo interesse artístico e cultural. “Comecei a puxar o fio à meada e encontrei um incrível mundo novo”.