Pioneiro e solitário, é o exemplo da paixão pelo cinema alimentada com os próprios meios, sempre escassos. “Sou como os ratos que vão buscar o queijo e depois voltam para a sua toca”, pode ler-se num catálogo da Cinemateca que recupera o comentário publicado em 1992 pelo JORNAL DE LEIRIA.
Entre o m|i|mo – museu da imagem em movimento e o Teatro Miguel Franco, as próximas semanas trazem de novo à superfície a vida e a obra de António Campos, ainda por descobrir, mais de 20 anos após a morte do realizador, um dos mais relevantes documentaristas do século XX português, que começou a filmar com uma máquina Payard 8mm adquirida a prestações com o primeiro ordenado de funcionário de secretaria na Escola Comercial de Leiria.
Já esta sexta-feira, no m|i|mo, é inaugurada uma exposição temporária de um mês com imagens, cartazes, recortes de imprensa, documentos e objectos pessoais, e, nos dias 11 a 20 de Março, no Teatro Miguel Franco, serão exibidos 14 filmes, ambas as iniciativas em parceria do Município com a Cinemateca, integradas nas comemorações dos 50 anos da revolução de 1974.
Para Catarina Alves Costa, que realizou o documentário Falamos de António Campos, “um dos grandes filmes sobre o 25 de Abril” é Gente da Praia da Vieira, que mostra “tudo o que estava a acontecer na época” e, com Vilarinho das Furnas (1971), representa um documento “único” do país. A investigadora e docente da Universidade Nova de Lisboa também destaca “as primeiras curtas” e dois filmes de ficção, Histórias Selvagens e Terra Fria, “talvez os mais importantes e mais vistos dele”, que “convém conhecer”.
“É, sem dúvida o grande realizador de Leiria”, com uma filmografia “íntima e de grande qualidade cinematográfica, sociológica e antropológica”, realça o cineasta e crítico Álvaro Romão. “Um tanto esquecida e escondida” e “de muito difícil visionamento” porque “não está acessível”, assinala. “Não existem filmes em DVD nem em streaming. As escolas do concelho, para nem falar no distrito, não têm acesso à sua obra. Os mais novos não sabem quem foi António Campos. Pode dizer-se que o Plano Nacional de Cinema não está a cumprir o seu papel. Até o m|i|mo poderia, deveria, fazer bem mais”.
14 sessões até 20 de Março
A oportunidade apresenta-se agora no Teatro Miguel Franco, em Leiria, a cidade onde António Campos nasceu a 29 de Maio de 1922. Está agendada a projecção de A Invenção do Amor (do poema homónimo de Daniel Filipe), Almadraba Atuneira (sobre a campanha do atum no Algarve) e A Festa, Retratos dos das Margens do Rio Lis e Histórias Selvagens, Paredes Pintadas da Revolução Portuguesa e A Tremonha de Cristal, Um Tesoiro (a partir do conto do escritor Lourenço Botas) e Gente da Praia da Vieira, O Senhor (inspirado no texto de Miguel Torga) e Vilarinho das Furnas (que testemunha o desaparecimento da aldeia devido à construção da barragem), Leiria 1960 (encomenda da Comissão Municipal do Turismo de Leiria) e ainda Falamos de Rio de Onor e Terra Fria (adaptação do romance de Ferreira de Castro).
Mesmo afastado dos círculos do poder, o que lhe retirou projecção, cronicamente fora do sistema e só pontualmente beneficiado por subsídios, o percurso é extenso: 45 filmes desde O Rio Liz (1957) até A Tremonha de Cristal (1993).
Vilarinho das Furnas, Falamos de Rio de Onor e Gente da Praia da Vieira “são obrigatórios para se compreender, por um lado como fazer documentários (com pouco dinheiro e equipa reduzida), e por outro como documentar para o futuro”, sublinha Álvaro Romão. “Também gosto muito de Leiria 1960, onde mostra a cidade provinciana que Leiria era nos anos 60. Não mudou muito”.
“Muito diferente de outros”
“O seu modo de falar e a sua maneira de vestir davam-lhe o ar de bom selvagem” que “cheirava a campo” e deixava as pessoas “desarmadas”, segundo o realizador Paulo Rocha, citado no catálogo da Cinemateca.
Na abordagem que se aproxima “de uma pesquisa acerca do povo, da cultura, das tradições”, António Campos é “muito diferente de outros realizadores” porque não impõe uma visão, pelo contrário, “dá a palavra, deixa que as pessoas falem”, como “observador”, assinala Catarina Alves Costa. A “disponibilidade para ouvir” surge a par de um olhar “muito raro” e “inovador”.
Entre Leiria e períodos da infância e juventude passados em Aveiro, António Campos, que faleceu em 1999, “teve de se fazer à vida” e “encontrar um trabalho”, mas com “dificuldades financeiras” para “gerir a necessidade de sobreviver com a possibilidade de fazer cinema”, apesar da bolsa de estudo em Londres (três meses) e do emprego na Fundação Calouste Gulbenkian que manteve de 1961 a 1977. O que, segundo Catarina Alves Costa, se reflecte nos filmes: é o rosto do povo que ocupa o primeiro plano, um mapa vivo de Portugal, sobretudo rural e interior, já a desaparecer nas décadas de 60 e 70.
“António Campos, mesmo tendo uma obra um tanto esquecida e escondida (com excepção de algumas sessões especiais, entre as quais a série 3 Meses – 3 Ciclos – 3 Autores do a9)))) no Teatro Miguel Franco) de muito difícil visionamento, é, sem dúvida o grande realizador de Leiria, com uma obra que acaba por ser extensa, íntima e de grande qualidade cinematográfica, sociológica e antropológica.
O cinema de António Campos ainda está por descobrir porque não está acessível. Tirando alguns interessados no cinema e que até promoveram visionamento de filmes de António Campos, como já referi, o a9)))), mas também a Ana David Mendes, o Bruno Gaspar, o Bruno Carnide e eu próprio, o facto é que o cinema dele não está acessível. Não existem filmes em DVD nem em streaming. Há alguns na pirataria, às vezes não na melhor qualidade. As escolas do concelho, para nem falar no distrito, não têm acesso à sua obra. Os mais novos não sabem quem foi António Campos. Pode dizer-se que o Plano Nacional de Cinema não está a cumprir o seu papel. Até o m|i|mo poderia, deveria, fazer bem mais. O cinema de António Campos é tão rico que de cada vez se descobre mais coisas nas suas obras.
Gosto especialmente dos documentários. Vilarinho das Furnas, Falamos de Rio de Onor e Gente da Praia da Vieira são filmes obrigatórios para se compreender, por um lado como fazer documentários (com pouco dinheiro e equipa reduzida), e por outro como documentar para o futuro. Também gosto muito de Leiria 1960, uma curta-metragem onde mostra a cidade provinciana que Leiria era nos anos 60. Não mudou muito.
Embora tenha alguns filmes de ficção, como Terra Fria, a sua importância está na forma como exerceu o documentário. Há, aliás, entre ele e António Reis, muitos pontos em comum, que poderiam ter dado a António Campos outra projecção que não teve por viver afastado dos grandes centros e por Leiria estar muito longe do poder. Ao contrário de Lisboa e Porto, onde António reis viveu, e mesmo de Coimbra, Leiria nunca teve uma massa crítica e cultural que saísse do seu centro para fora da cidade. Ainda hoje é assim, com algumas excepções, claro”.