Nos últimos 30 anos tem-se verificado um aumento do número de casos de autismo diagnosticados em todos os países onde foram realizados os estudos de prevalência. Um crescimento que pode, em parte, ser resultado de uma maior consciencialização das mudanças nos critérios de diagnóstico e de uma identificação mais precoce.
A informação da Federação Portuguesa de Autismo é corroborada por Conceição Fernandes, coordenadora da equipa multidisciplinar de apoio à educação inclusiva (EMAEI) do Agrupamento de Escolas Domingos Sequeira (AEDS), em Leiria.
“De facto, existe actualmente um diagnóstico mais precoce e estamos mais atentos às características do desenvolvimento. Antes, muitas crianças também iam para as cooperativas de ensino e reabilitação de crianças inadaptadas [CERCI]”, constata a professora de educação especial.
A imigração contribuiu ainda mais para o aumento de casos, uma vez que as escolas portuguesas têm vindo a receber um número elevado de alunos estrangeiros, que também têm necessidades especiais.
O decreto-lei n.º 54/2018 aposta numa “escola inclusiva onde todos e cada um dos alunos, independentemente da sua situação pessoal e social, encontram respostas que lhes possibilitam a aquisição de um nível de educação e formação facilitadoras da sua plena inclusão social”.
Conceição Fernandes sublinha que as escolas se têm empenhado em dar resposta a todos os alunos e não apenas aos jovens que têm necessidades especiais comprovadas com relatórios médicos.
“Cada vez mais temos de dar resposta a muitos alunos com diferentes barreiras à aprendizagem. Há que dar também acompanhamento aos alunos que chegam de diferentes países, alguns deles de países de língua portuguesa, outros onde a língua materna não é o português”, assume, reconhecendo que é difícil para um professor “dar respostas diferenciadas” numa sala de aula com 28 alunos.
Falta de recursos
Sendo o AEDS unidade de referência para alunos com Perturbação do Espectro do Autismo (PEA), há um esforço da Câmara de Leiria para garantir um maior número de assistentes operacionais.
Mas, Conceição Fernandes admite que “ao nível das perturbações do humor e do comportamento, alguns alunos são medicados e necessitam de um acompanhamento de um para um”, mais individualizado, o que nem sempre é possível cumprir por falta de recursos humanos.
“Temos muitos alunos, até porque a escolaridade obrigatória vai até aos 18 anos.”
“Existem muitos profissionais na área da educação a trabalhar, mas também são cada vez mais alunos a necessitar de resposta individualizada. Temos duas docentes em falta e o horário vai a concurso e não é preenchido. Deveríamos ter mais terapeutas da fala, ocupacionais e psicólogos. Aumentou o número de alunos com necessidades específicas e temos os mesmos técnicos.”
Os alunos com PEA, por exemplo, têm características muito próprias, afirma. “Alguns têm hipersensibilidade ao som, à luz ou ao ambiente. Para estes alunos, precisamos de um ambiente mais calmo e estruturado, com respostas mais direccionadas a esta perturbação, tornando-se por vezes difícil, porque temos muitos alunos.”
Conceição Fernandes vai mais longe: “Não será tanto se as escolas estão preparadas, mas se as respostas que os alunos necessitam são as mais indicadas”. Por isso, a professora de educação especial reconhece que para alguns alunos os ambientes com um excesso de estímulos constituem uma barreira à aprendizagem. “Felizmente são poucos”, diz.
Mas, nos casos mais difíceis, é possível solicitar ao Ministério da Educação o encaminhamento para uma valência educacional em instituição, “que pode ser mais apropriada ao desenvolvimento de competências relacionais e promotoras do bem-estar do aluno”.
“Estas decisões são sempre muito ponderadas e requerem pareceres de equipas multidisciplinares”, revela. O barulho dos toques de entrada e saída e a agitação própria de uma escola que tem mais de mil alunos pode não ser fácil para um jovem com PEA.
Susana Lalanda, psicóloga, explica que o PEA é “uma perturbação do neurodesenvolvimento, com implicações ao nível do desenvolvimento da qualidade da interacção social, dos interesses restritos e de comportamentos repetitivos, além de se reflectir na qualidade da comunicação”. O grau de severidade pode ser classificado, de acordo com a DSM 5 em nível 1, 2 e 3, “o que deixa já antever uma variabilidade enorme entre crianças e indivíduos adultos”. Daí cada caso ser um caso e não existirem estratégias tipo para serem aplicadas de forma cega. Esse é um desafio para auxiliares e docentes, que têm de lidar com a desregulação emocional que acontece, por vezes, com alguma frequência.
“A questão de se tratar de um espectro deve também fazer pensar que não existem ‘fórmulas mágicas’ gerais, ou seja, o que pode funcionar e tranquilizar um aluno pode também levar outro a desregular-se noutro momento”, alerta a psicóloga, especializada em PEA. Durante um momento de crise, o jovem pode tornar-se violento, o que obriga a uma intervenção ainda mais cuidada e com conhecimento.
Susana Lalanda aponta que a “intervenção antecipada é a chave para gerir as crises”.
Para tal, é preciso reconhecer os sinais de alerta de uma crise iminente para que possa “redirecionar e distrair a criança da melhor maneira possível para evitar que suas emoções aumentem”.
“Fique calmo. Dê o exemplo respirando fundo, evite movimentos repentinos e fale com voz baixa para ajudar a incutir uma sensação de calma em todos. Mude o ambiente. Sempre que possível, retire o indivíduo da situação e leve-o para um local tranquilo para se acalmar, por exemplo caminhar”, são algumas das estratégias recomendadas pela psicóloga, que insiste no alerta para a importância de avaliar cada caso individualmente, para saber o que resulta com cada criança.
Susana Lalanda assume que cada pessoa com PEA é única e com necessidades muito diferentes entre si. “Cabe ao adulto adaptar-se e promover a adaptação do meio, a par de um trabalho muito próximo com a família para desenvolver um plano real e ajustado à criança”, aconselha, reconhecendo, contudo, que “nem sempre é fácil”, uma vez que “a escola é constituída por pessoas, cada uma também com características individuais”. A psicóloga defende “um investimento em formação especializada para docentes e até a constituição de equipas, onde se possa discutir casos e estratégias de actuação individuais”, sendo “essencial uma articulação próxima entre a saúde, educação e a família”.
No entanto, avisa, é impossível controlar todas as variáveis, antecipar todas as dificuldades ou estruturar tudo. “Por isso, é essencial que se ‘treinem’ os imprevistos de modo a conseguir-se diminuir a ansiedade dos alunos com PEA perante um obstáculo inesperado, promovendo assim a flexibilidade e capacidade de adaptação da criança”, frisa.
A intervenção será tanto mais eficaz quanto maior for a articulação com as várias áreas de intervenção (saúde, escola, terapias) e contextos (família), onde a criança se insere para que possam caminhar de mãos dadas. Susana Lalanda considera que a “inclusão pretende reconhecer e respeitar a diversidade de condições físicas e intelectuais dos cidadãos”, sendo fundamental “reflectir no caminho que cada um deve fazer para a alcançar, já que será um desafio diário e contínuo que exige da sociedade, da família e da criança”.
Por isso, a psicóloga afirma que é “essencial que se olhe para a inclusão como um caminho bi-direccional: há uma adaptação de parte a parte”. “Para mim, a verdadeira inclusão é o encontro entre as minhas necessidades com as do outro. Como chegaremos lá? É um caminho que se faz com o superar de obstáculos, feito de avanços e recuos, mas com um esforço e um encontro entre intervenientes.”
Joaquim Pequicho aplaude qualquer tipo de inclusão em contexto escolar, mas defende uma maior articulação com os Centros de Recursos para a Inclusão (CRI). “Não podemos olhar para a inclusão sem mobilizar os apoios especializados que os jovens necessitam para as suas aprendizagens e aquisições”, adianta, ao apelar à mobilização de um maior recurso financeiro para que os CRI possam dar as respostas qualificadas e adequadas a todos.
O presidente da Cercina – Cooperativa de Ensino, Reabilitação, Capacitação e Inclusão da Nazaré considera que a inclusão “não se faz com auxiliares sem formação”. Além disso, há crianças que necessitam de um apoio com maior complexidade e estão relegados na sala.
“Isso não é inclusão, é entregar a criança à escola, sem dar os recursos necessários. E o apoio não tem de ser totalmente em ambiente escolar. Daí a importância dos CRI, que trabalham a inclusão, a qualidade de vida e o bem-estar”, assume.
“As escolas não conseguem responder às necessidades. Sinto isso desde sempre e quanto mais velho está o meu filho, pior.” O desabafo é de Raquel Costa, mãe de um jovem de 16 anos com Perturbação do Espectro do Autismo (PEA). Assume que passou a vida numa busca incessante pelas melhores estratégias e soluções para o filho, mas nem sempre encontrou uma porta aberta do lado das escolas.
Consciente que o seu filho não é uma criança fácil, que por vezes tem crises emocionais que o podem tornar violento, Raquel Costa aponta que as escolas têm de estar preparadas para lidar com todos os jovens e ter formação para isso. “O meu filho tem o direito de estar na escola, que tem de dar resposta a todas as suas necessidades”, sublinha.
“Descobri que, quando uma criança se torna violenta, tem de existir um plano de contingência para lidar com a situação, mas não existe”, critica, reconhecendo que o Agrupamento de Escolas Domingos Sequeira, onde está actualmente o filho, foi aquele que melhor tem conseguido lidar com o jovem.
Não obstante, as agressões a docentes e auxiliares já aconteceram. “Lamento, mas não posso fazer nada. As pessoas têm de estar preparadas para lidar com estes alunos. Não posso culpar o meu filho de algo que não tem culpa. E não admito que uma professora me diga que se não tirar o meu filho da escola ela mete baixa”, critica.
Para Raquel Costa, os planos educativos individuais estão, muitas vezes, desajustados da realidade da criança. “Se o meu filho não aprende a ler e a escrever, porquê insistir todos os anos na mesma coisa? Se calhar, devem apostar na aquisição de outras competências para o seu dia-a-dia”, assume, acrescentando que há também outras formas de treinar a matemática “como na educação física”.
Bruna Lopes é mãe de um menino de 10 anos com diagnósticos de Perturbação Hiperactividade e Défice de Atenção e de PEA. Durante uma desregulação emocional da criança em sala de aula, a mãe acusa um professor de uma escola da Marinha Grande de o agredir e apresentou queixa-crime na PSP. A escola não comenta.
“As escolas não sabem lidar com estes alunos. Não há o mínimo de preparação e recriminam as crianças. Há uma falta de empatia, humanização e conhecimento da parte dos professores. Foi-lhe instaurado um processo disciplinar como se tivesse culpa”, defende Bruna Lopes. “Tentam contornar a situação e culpam- -me a mim.”
Viviana Silva, da Associação PARA – Projecto de Apoio e Recursos para o Autismo, constata que há várias causas para a explosão emocional e que podem estar relacionadas com dificuldades ambientais, como cheiros, excesso de barulho ou de luz, ou situações de bullying, “casos que são muito frequentes e passam despercebidos”.
No entanto, “nem os professores nem as auxiliares têm estratégias” para lidar com estas situações, pois “é preciso formação especializada, tanto no autismo como no comportamento”. “Ninguém se lembra de mandar uma cadeira. Há sempre uma causa, que muitas vezes é ignorada”, lamenta. Segundo Viviana Silva, não existe inclusão nas escolas, pois “estar presente não é inclusão”.
“É preciso que o espaço aceite que a criança x tenha aquelas condições e os recursos y, o que na maior parte das escolas não acontece.” Há também uma barreira em aceitar ajuda. “Sabem que têm uma criança com necessidades especiais e precisam de ajuda para intervir. Admitir isso é uma grande dificuldade por parte das escolas”, revela, ao lamentar que há estabelecimentos de ensino que recusam que os técnicos da PARA possam deslocar-se à escola para trabalhar com crianças e treinar auxiliares educativos e professores.