Hoje, Maria Miguel Ferreira escreve a Carlos Matos.
Este é um projecto de troca epistolar, organizado em corrente: 12 pessoas da cidade procedem ao envio de uma carta dirigida a uma outra pessoa que vive num bairro diferente, explorando a cidade como referência, tendo em conta expectativas de um amanhã. O que querem melhorar, o que acham importante conversar, o que é urgente repensar. Abrem uma conversa pública entre pessoas que se conhecem e não se conhecem, mas que partilham o espaço de uma cidade agora.
As Cartas Para Leiria e para o Futuro integram a programação de MAPAS, que decorre em Leiria de 1 a 12 de Julho de 2020, com o JORNAL DE LEIRIA como media partner.
Para acompanhar diariamente, online, no site do JORNAL DE LEIRIA e no site de MAPAS (https://www.m-a-p-a-s.com/).
“Leiria, 15 de junho 2020
Querido Carlos Matos,
Querida Leiria do meu coração,
À hora a que vos escrevo, acabada de ler a carta que recebi do Hugo Ferreira e ainda com os olhos húmidos pela força do seu manifesto anti-dantes, ocorre-me dizer-vos que vocês são, para mim, como o poeta barbudo: contêm multitudes.
Carlos: os sítios por onde foste deixando a tua marca, em Leiria, são parte da minha geografia sentimental. Estão todos riscados com um X bem gordo no meu mapa-mundo. Da cave escura do D. Dinis às muralhas do Castelo, das tempestades sónicas no Alto Vieiro às rajadas estereofónicas para os lados da Rotunda do Estádio, das conspirações em guardanapos de papel na Praça, às páginas impressas da tua sabedoria e sensibilidade no nosso Jornal. És, e foste sendo cada vez mais, património meu – da mesma maneira que sinto como meus aquele metro e meio de muro à porta do Liceu, a mesa do canto na esplanada da Arquivo ou o cheiro a camarinhas que invade a reta do Tremelgo no começo de Junho.
Leiria: gosto muito de ti. Não foi sempre assim, não adianta branquear o passado. Quando era miúda reclamava de como era torta a Rua Direita, dizia em coro com os da minha geração “aqui não há nada para fazer” e queria sair para outras terras, onde me sentisse mais anónima. Só muitos anos mais tarde compreendi que cresci nas tuas ruas livre como uma nuvem, com direito a experimentar tudo o que me inspirasse curiosidade. Fui embora e amuei uns anos, já ninguém se lembra porquê. Mas não me me durou muito a birra. Fui voltando como um bumerangue. Primeiro pelas saudades das pessoas, depois pelo silêncio que não se ouve nas ruas de outras cidades e hoje, porque acho que tu, minha rica terra, podes ser o que quiseres. A cada regresso, sustenho a respiração para saber que voltas vais levando pelas mãos dos que te sonham mais inclusiva e melhor para quem há-de vir. Não consigo, não quero ficar longe.
Há uns dias estive a olhar para fotografias antigas nos álbuns que os meus pais guardam no móvel da sala de estar, por baixo da prateleira dos Mon Cherris. Já não me recordo de todas as estórias por detrás daqueles instantâneos de cortes de cabelo à tigela e dedos eternizados nos cantos da lente. Mas o que ficou da espuma desses dias é qualquer coisa bem mais sólida e duradoura que a bolacha de baunilha dos sorvetes que comprava ao domingo na Pastelaria Santos. Disseram-me que todas as cartas de amor são ridículas – e se isto não é a declaração de amor mais ridícula que já leram, então não sei que raio andam vocês a ler.
A Marieta manda um beijo para os seus, um beijo na família, na Cecília e nas crianças, o Francis aproveita pra também mandar lembranças, a todo o pessoal, adeus.
Maria Miguel Ferreira”
Cartas anteriores:
1. Patrícia Martins
2. Jorge Vaz Dias
3. Hugo Ferreira