Manhã cedo, antes das nove, corre o primeiro vinho para lá das portadas de madeira que dão acesso ao interior da Taberna do Lagoa – o edifício substitui o original demolido durante a obra de redimensionamento do estádio de Leiria para o campeonato da Europa de 2004.
Um cliente de pé ao balcão, copo de branco em recta de mármore sobre vitrinas de comida. Ao alto, os cachecóis do futebol, alinhados junto ao tecto. Outro senta-se frente a frente com a dose de carne cozida, o jarro de tinto e o televisor sintonizado na emissão da TVI.
É terça-feira de mercado em Leiria, entrega-se ao corpo a energia que o trabalho na tenda reclama. Não há atendimento para convívios de cartas, lê-se no aviso afixado na parede.
Nos bastidores, manda Maria Adelaide, 76 anos de idade, 51 vividos no Lagoa, entre o fogão e a mesa, primeiro sob a orientação dos sogros e desde 1985 lado a lado com o marido (entretanto, falecido) e agora com o apoio dos filhos, Nuno e Cláudia, e da nora, Ana. “Estou quase a abandonar o barco, já são muitos anos em cima das pernas”, antecipa. Nuno e Cláudia são bisnetos de Joaquim de Oliveira Lagoa, o fundador.
Em dias de jogo, a Taberna é o ponto de encontro da claque Carapaus do Lis. “Quando o União estava na primeira divisão, era muita gente, era Leiria em peso”. Também os treinadores Vítor Manuel e Manuel Cajuda se renderam aos petiscos de Maria Adelaide. No Lagoa, é raro faltar língua estufada, faceira, chispe, panados, moelas, rojões, peixe frito ou iscas. Sopa da pedra, há todas as quartas-feiras. “E depois, à sexta-feira de manhã, é o prato favorito de muitos, que às nove horas já estão aqui, é frango frito. Venho para baixo às oito e um quarto, oito e vinte, e frito quatro, cinco frangos, é sempre a despachar”.
Sábados e domingos, os clientes é que levam a febra ao carvão, em modo grelhe você mesmo. “Alguns são como família”, diz o filho, Nuno. “Chegam e dizem: esta é a nossa segunda casa”, confirma Maria Adelaide. “Temos muita malta amiga, por quem temos consideração”.
“Boa tarde, se não chover”
A alma da gastronomia mais típica (e popular) de Leiria continuam a ser as mulheres. A tradição ainda é o que era e o humor também soa a clássico, como a rotina de um filme a preto e branco – “Boa tarde, se não chover!”.
Na Tasca da Gracinda, há décadas instalada onde a Avenida Marquês de Pombal desagua na rotunda do Jardim de Santo Agostinho, o frenesim de almoços pega com a hora do lanche e diferentes gerações acampam entre fotografias de época e pinturas sobre azulejo, fritos e refugados, a empurrar conversa à volta do vinho e do petisco, sem lugar para “modernices” como a palavra gourmet.
“A minha escola de vida é que me ensinou, aprendi aqui”. Gracinda Santos, a Ti Gracinda, já soma 51 anos no posto. Começou aos 14, aprendiz, até assumir o negócio, com “sete contos das gorjetas”, solteira, num ambiente tipicamente masculino. “Fui sempre rija. Nunca admiti que alguém entrasse do balcão para dentro. Impunha-me, sempre”.
O cozido à portuguesa, o arroz de cabidela e o polvo à lagareiro comprovam os talentos da Ti Gracinda e arrastam fregueses para a Rua Nossa Senhora da Encarnação, em filas até à porta. “Fazem parte da minha família, faço tudo para lhes agradar”, assegura. “Até vêm desabafar, às vezes, os problemas deles”. O momento de pendurar a colher de pau pela última vez mantém-se distante. “Como é que eu vivia sem as pessoas de quem gosto tanto?”, pergunta. “Adoro cozinhar, adoro pôr na mesa o mais bonito que posso. Para se cozinhar, tem de se amar, tem de se gostar muito”.
Além do marido, César, a filha, Ana Maria, conhece os cantos e recantos do estabelecimento, que se enche, repetidamente, no horário mais concorrido.
“Os produtos aumentaram 30 a 50 por cento”, mas a diária permanece acessível: 10 euros. “Tem de se ter muito cuidado com as compras”, avisa Gracinda Santos. “Não é bom comprar sempre ao mesmo, começam a abusar”. Da qualidade, não abdica. “Se não comprarmos bom não podemos vender bom”. O resto é dedicação. “Levanto-me cedo e deito-me tarde. Temos de trabalhar, as nossas mãozinhas têm de andar”.
“A minha arte está em extinção”
No centro histórico, a atmosfera acolhedora da Tasca 7, com velharias e cartazes de corridas de touros, abre uma passagem para O Retiro do Abade, onde tudo principiou, em 1987. Estrela Albuquerque, 65 anos, é originária do Ribatejo e aficionada das touradas, que ia a Espanha ver ao vivo, nos fins-de-semana, com o marido, já desaparecido.
Do curso geral de formação feminina para o comando da frigideira, e, pelo meio, temporadas nas linhas telefónicas da Portugal Telecom, a Estrelinha, como todos a acarinham, procura seguir à risca os ensinamentos da mãe – “uma grande mestra”. Na Rua Maria da Fonte, que liga com a Rua Direita, resistem os melhores segredos recebidos de herança: tomatada de ovos, ervilhas com ovos escalfados, sopas de bacalhau, sopa de cação, massa à campino. Também costume, a açorda alentejana, a mão de vaca, as iscas, a feijoada, as caras de bacalhau, o cozido. “Não sei fazer outras coisas. Gasto muito gás, sou muito gastadeira. As mulheres do antigamente gastam muito, as coisinhas são bem apuradas”. E remata: “A minha arte está em extinção”.
A diária – 10 euros, contempla pão, azeitonas, prato, bebida e sopa ou sobremesa – não exclui, inclui. “Já ganho menos há 36 anos, muito menos do que os outros. E é muito mais trabalhoso. Levanto-me às seis da manhã, às sete vou ao mercado, às oito estou aqui. É difícil. Hoje eram oito e meia já tinha os tachos ao lume”. Na ementa já só raramente entra o peixe fresco. “A malta nova não come peixe porque não tem dinheiro”, argumenta. “A minha cozinha é muito de esquerda, filho, eu quando faço bife de vaca é para todos”.
Além do livro de receitas e dos objectos de decoração, d’O Retiro do Abade vieram alguns clientes. E os filhos deles. E os netos. “Deu-me muitas amizades, muitas alegrias”, comenta Estrela Albuquerque, sobre uma existência (quase) inteira vivida como cozinheira. Reforma? “Quero ver se não fecho. Se vou para casa, morro”. Jantares, só por marcação. “Cada um janta na sua casa. Pão com manteiga e café, que é o que eu faço”.