Unhas limpas e arranjadas e lábios pintados são os desejos de Conceição Silva, 62 anos, quando morrer. O recado já foi dado à filha, a quem também pediu para garantir um caixão que não lhe deixe a cabeça descaída, embora prefira que a urna se mantenha sempre fechada.
Conceição Silva encara a morte com toda a naturalidade, o que é pouco comum, sobretudo, na cultura portuguesa, onde a maioria das pessoas teme que ao falar do assunto atraia o evento. Quando a sua mãe morreu, Conceição também já sabia os sapatos que ela tinha escolhido para o funeral.
“A morte é o ciclo da vida. Não é por falar nela que vamos atraí-la”, sublinha, ao referir que assistiu à transladação dos restos mortais da mãe com toda a naturalidade. “Há ainda vários temas tabu na sociedade e a morte não é excepção. Ninguém quer ser confrontado com o final de vida, seja seu ou de alguém próximo. Falar sobre isso parece atrair o azar. É um mecanismo de defesa do ego praticar a negação. Se fingirmos que não existe, podemos evitar ao máximo sofrer. Até ser inevitável”, adianta a psicóloga Daniela Anéis.
A última despedida de Conceição Silva, há cerca de uma década, foi a do marido, que durante anos lutou contra um cancro, mas a morte nunca foi tabu, apesar de todo o sofrimento que é impossível não sentir. “Falávamos muito sobre tudo e fomos juntos ao cemitério ver campas: ‘Escolhe uma igual àquela. É uma boa pedra para não teres muito trabalho a limpar’. Tratámos de tudo antes dele morrer”, recorda, ao admitir que a sociedade não está preparada para falar da morte antes dela acontecer. Choveram críticas da família e de pessoas próximas, até quando começou a tratar das partilhas e burocracia.
“Ele disse-me: ‘não te esqueças que a vida continua. Refaz a tua vida’”, lembra as palavras do marido. “A morte sempre foi falada de forma aberta e isso ajudou a fazer o luto”, reconhece. Ana João Carvalho, médica dos cuidados paliativos do Centro Hospitalar de Leiria, defende que “não é só a educação para a saúde que tanto se fala que é importante, mas também a educação para o fim de vida. O assunto devia ser falado também nas escolas”.
“Quanto mais cedo se verbalizar sobre a morte, melhor. A chave – e não há uma fórmula mágica – é abrirmos a literacia, fazer com que a morte deixe de ser um tabu na sociedade, porque isso vai facilitar a comunicação à volta deste tema”, reforça.
A especialista afirma que há dois momentos de um “sofrimento muito intenso”. “As pessoas têm medo do processo em si: de não ter dor, não sentir falta de ar ou em ansiedade. Há esse medo da pessoa que está muito doente e da família”, constata.
Por outro lado, há a dor de perder alguém significativo. “É paralisante e acabamos por ter muita dificuldade em verbalizar isso e é um medo muito legítimo.” Por isso, Ana João Carvalho considera que se deve falar da morte “até antes de haver doença, como em conversas informais” com a família ou com os amigos. A médica reconhece a dificuldade em passar “pela dor do processo” de perder alguém importante e “de repente, tem-se 48 horas para que esteja tudo terminado”.
“A pessoa morreu de manhã, à tarde já está na funerária e já nos estão a perguntar como é que queremos o caixão, se é para cremar… É muito duro, se não tivermos isso já preparado”, reforça.
Conceição Silva já abordou o assunto com a filha sobre a sua morte. “Não quero que passe pelo sofrimento que eu passei. Quando já não há nada a fazer, o melhor é terminar com o assunto e não estar a sofrer”, revela.
Segundo Ana João Carvalho, mesmo no internamento em cuidados paliativos as pessoas não comentam de imediato que já trazem tudo preparado para a sua morte. “Só o fazem quando ganham confiança com a equipa e, normalmente, verbalizam apenas com as enfermeiras e as auxiliares. Mesmo dentro do hospital, as pessoas têm medo do julgamento”, lamenta.
A médica considera que foi a “experiência com o marido e o quão apaziguador foi” que terá levado Conceição Silva a falar antecipadamente com a filha sobre a sua morte.
Daniela Anéis explica que a dificuldade em abordar o assunto passa por ser “difícil imaginar que temos o tempo contado, especialmente quando somos jovens, quando tudo parece distante e que só acontece aos outros”.
“Se tivermos de morrer jovens, que seja à James Dean, de forma épica. Se ainda falta tanto tempo, porquê pensar nisso?”, reforça.
Como forma de desmistificar e até normalizar a morte o projecto Leiria Compassiva – ComPaixão pelos seus!, promovido pela Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos e pela Fundação “la Caixa” e BPI, tem organizado vários Death Café, onde a comunidade que se inscreve tem oportunidade de falar sobre a finitude da vida. “Resolvíamos uma série de problemas se falássemos mais da morte”, lança um dos participantes do primeiro Death Café organizado em Leiria.
“A morte não é o fim da vida, mas a vida toda. É preciso ver a vida de outra forma: se amamos e fomos amados e entender que estamos cá pouco tempo”, acrescentou outro participante, ao adiantar que não teve coragem de falar com o seu ente da forma como queria morrer.
A maioria dos participantes confessou a importância da comunicação e até a partilha em sessões como o Death Café, uma vez que sentem que não estão sozinhos na sua dor. “Quando nascemos sabemos que vamos morrer, mas é estranho pensar que alguém próximo de nós vai morrer e pode acontecer muito cedo. Escondemos a morte das crianças porque é uma coisa feia e fugimos de um assunto que temos certo”, referiu outra das pessoas presentes no encontro.
Ana João Carvalho admite que o tabu à volta da morte é “cultural”. “Tem a ver com a evolução da humanidade. Tornamo-nos mais materialistas e focamo-nos mais no que é técnico e material. Com a evolução da medicina e das condições gerais de vida das pessoas, que melhoraram, a sociedade ocidental começou a ver a morte como algo que se poderia combater. Deu-nos uma certa sensação de imortalidade”, justifica.
“O fugir ao assunto da morte vai traduzir-se em fins de vida e lutos difíceis.”
Testamento vital, um mero desconhecido
Diz o povo que o que temos mais certo é a morte. Mas poucos gostam de falar da perda – sua ou de alguém de quem se gosta, mesmo estando o ciclo da vida bem definido para todos os seres vivos: nasce, cresce e morre.
Se o nascimento é uma felicidade e preparado ao ínfimo pormenor, a morte, mesmo quando se sabe que está perto, não é falada em muitos contextos familiares ou de amigos. Talvez por isso sejam ainda muito poucos os portugueses que têm o seu testamento vital assinado.
Segundo dados do Registo Nacional do Testamento Vital (RENTEV), mais de 13 mil portugueses entregaram o seu testamento vital em 2022, duplicando o número de registos em relação ao ano anterior.
Desde a sua criação, em 2014, mais de 53 mil portugueses que tinham optado por o fazer, o que representa apenas 0,5% da população nacional. O documento reveste-se de uma importância tão grande como a do nascimento. “Vai deixar os outros decidirem por si o que quer fazer na hora da morte?”, questiona Ana João Carvalho.
De acordo com o Serviço Nacional de Saúde, o testamento vital regista a vontade do doente em situações em que o próprio não consegue tomar decisões. Entre as vontades estão ser ou não submetido a reanimação, escolher quem quer ter junto a si nos últimos momentos, interromper os meios artificiais de vida ou recusar ser submetido a medidas de alimentação e hidratação artificiais que apenas visem retardar o processo natural de morte.
Uma das participantes no Death Café revelou que fez o seu testamento vital aos 20 anos.
A notícia surpreendeu os pais, não só por ser muito nova, mas porque a jovem não escolheu os progenitores, de quem ainda dependia na altura, para serem o seu procurador. “Fi-lo por vários motivos. Fui bombeira e vivenciei algumas situações que me fizeram pensar no que gostaria que me fosse feito, se estivesse no lugar daquela pessoa”, conta.
Por outro lado, uma cirurgia que a deixou por um breve período de tempo incapacitada de um membro também a levaram a reflectir no que seria feito se deixasse de ter autonomia. O assunto foi falado em família, mas a jovem optou por escolher a irmã, dois anos mais velha, para ser a sua procuradora de cuidados, até porque os pais têm visões diferentes da sua.
Dez anos depois, esta profissional de saúde, que prefere o anonimato, admite que teve colegas que não compreenderam algumas das suas escolhas. A sua experiência de vida também a fez alterar algumas das decisões iniciais no documento. “Trabalhei com o luto oncológico e para mim não faz sentido realizar quimioterapia numa fase muito avançada da doença, quando não haverá cura. Já me disseram que isso é desistir de viver. Para mim, não. É viver com qualidade o mais tempo possível. Não tenho medo da morte ou de morrer nova. Tenho medo de ficar incapacitada e não ter qualidade de vida. Foi isso que fiz transparecer no testamento vital”, revela.
“Não é por fazermos o testamento vital que vamos morrer mais cedo. Não é justo para os nossos familiares terem de decidir determinadas coisas que já poderiam estar previstas antecipadamente”, assume Ana João Carvalho.
Em resposta a quem estranha o registo do testamento vital num jovem, a médica lembra que “infelizmente fatalidades e eventos súbitos acontecem a pessoas novas”, acrescentando que o documento não se faz numa tarde. “Eu sou profissional de saúde e demorei algum tempo a reflectir sobre as decisões. Não é preciso fazer logo, mas só o exercício de pensar na morte já é de saudar. Ajuda até a viver de maneira diferente, pensando no que me falta fazer se morresse agora.”, exemplifica.
Daniela Anéis afirma que “os temas tabu são doenças dentro das famílias”. “Não as favorecem em nada. Falar impede de processar as coisas. Saber que a morte existe e mais ou menos como tudo funciona facilita. Ser apanhado completamente de surpresa pode ser muito traumatizante”.
Como é óbvio, não é possível impedir as pessoas de sofrerem com a perda e não existe “curso de preparação para a morte de alguém querido como alguém uma vez pediu”. “É um processo que se desenrola com avanços e recuos, em que falar da perda ajuda e ter espaço para sofrer também. A propósito recomendo a leitura do livro Está tudo bem em não estar bem, de Megan Devine”.