Em 1991, Zé Leonel é uma figura carismática da cena musical portuguesa, punk antes do punk, co-fundador e ex-vocalista dos Xutos & Pontapés e líder incontestado dos Ex-Votos, colectivo de Lisboa com projecção nacional que se apresenta em Alcobaça à espera de coroação.
“Acabaram por ser vencidos, provavelmente por terem confiado demasiadamente na vitória, mas, também, pelo facto de os Estado Sónico terem apresentado uma espécie de concerto da sua vida e sido primorosos na sua actuação”, recorda José Alberto Vasco, o presidente do júri e responsável por anunciar a decisão, no palco.
“O Zé Leonel, surpreendido pela derrota, veio logo ter comigo e tivemos uma fortíssima discussão, até que ele parou, emitiu aquele seu lendário sorriso e me convidou para irmos beber uma cerveja e fazer as pazes de uma guerra que não chegou a existir”.
O episódio pontua o primeiro Concurso de Música Moderna de Alcobaça, no Bar Ben, evento marcante na região (e no País) que é celebrado este sábado, 3 de Julho, 30 anos depois, com uma tertúlia e com a doação das maquetes de candidatura ao Arquivo Nacional do Som.
Segundo José Alberto Vasco, depois daquele momento de tensão, rapidamente sanado, os Ex-Votos (que em 1994 lançam Cantigas do Bloqueio, com o êxito Subtilezas Porno-Populares, também conhecido como Pimba!) acabam por tornar-se parte da mobília, no Bar Ben Almanzor, onde actuam várias vezes ao longo dos anos. “Tendo- lhes mesmo cabido a honra de, em Fevereiro de 1998, serem a última banda a actuar no evento que encerrou esses históricos e gloriosos anos da movida alcobacense, o Rockalcoa”, explica.
Já os Estado Sónico, que existiam há dois anos, continuaram no caminho que os havia de levar a gravar um disco homónimo, em 1995. “A vitória [no Bar Ben] teve pelo menos o impacto de nos fazer querer fazer mais, tocar mais, compor mais, ir tocar ali outra vez e a outros lados. Deu-nos um sentimento de pertença a um mundo em que queríamos entrar e no qual sabíamos ser muito difícil ter alguma representatividade e oportunidades”, assinala o vocalista José Polido.
Para os Estado Sónico, tocar no Ben significava, segundo José Polido, ir ao cinema ver um filme para maiores de 18 anos quando se tem, apenas, 14. “Tudo escalava porque de repente a sala estava cheia de gente, de fumo, de cheiros e as caras estavam mesmo ali à nossa frente a olharem- nos nos olhos”, descreve. E a noite da consagração? “Tínhamos uma inocência e uma verdade no que fazíamos que era muito nossa. Acho que essa ingenuidade e intensidade que púnhamos na nossa música e nos concertos fez a diferença”.
A desilusão dos Ex-Votos não é a única derrota digna de registo em sete edições e há pelo menos mais uma vez em que a ordem dos factores se altera para honra aos vencedores, glória aos vencidos, com os Paranóia, de Leiria, a superarem os Gift, de Alcobaça, em 1994, primeiro ano da carreira conjunta de Sónia Tavares, Nuno Gonçalves, John Gonçalves e Miguel Ribeiro, à época ainda acompanhados por Ricardo Braga.
Estado Sónico (1991, da Marinha Grande), Superpopadélico (1992, único colectivo de Alcobaça a receber o primeiro prémio), Vodka Pedra (1993, de Almada), Paranóia (1994, de Leiria), Blasted Mechanism (1995, de Oeiras), The Mouse Trap (1996, de Caldas da Rainha) e Virtualma (1997, de Leiria) ficam nos livros como vencedores do Concurso de Música Moderna de Alcobaça, “uma elegia à amizade e à partilha de estima e afeição”, diz José Alberto Vasco, sempre no Bar Ben, por onde passaram “centenas de músicos, miúdos que vinham de todo o País, uns mais abonados e outros menos”, que “muitas vezes” nem se sabia “onde comiam ou dormiam ou até se o faziam”, mas “todos animados por um espírito de conquista e vontade de mostrar a sua criatividade”, uma “genuína irmandade do rock nacional”.
Carlos Nunes (então gerente do Bar Ben) e José Alberto Vasco (colaborador de rádios e jornais na área da cultura) são os mentores do Concurso de Música Moderna de Alcobaça, cuja primeira sessão acontece a 5 de Julho de 1991, com os Épánãosei, de Alcobaça. E acontece, porque “havia muita nova banda a necessitar de palco”, num período em que a maioria dos concertos ocorriam em Lisboa e Porto.
“Quando a Blitz comemorou o 30.º aniversário, em 2014, fez uma interessante publicação sobre o panorama nacional dessa época e, nos 30 espaços de concerto referidos, o único que não se situava nas nossas duas maiores cidades era precisamente o Bar Ben”, aponta José Alberto Vasco. “Reflexo disso era o facto de o Ben ser frequentado por muita gente de fora de Alcobaça, nomeadamente de Leiria, Caldas da Rainha, Santarém e até Lisboa”.
A diversidade de linguagens na programação do Bar Ben, do jazz ao pop rock, reflecte-se no Concurso de Música Moderna, que atrai de tudo: influências de Manchester, grunge, trash metal, rockabilly, experimental e outros géneros. Com o regulamento a garantir liberdade de expressão, acredita José Alberto Vasco. “Marcava a diferença face a todos os outros, pois, além de não colocar limitações de duração nos temas, permitia que eles fossem elaborados em qualquer idioma”. E, logo em 1991, aparecem os Ode Filípica, de Leiria, com Carlos Matos (actualmente, presidente da Fade In) a cantar em… odês.