Milhares de declarações de profissionais do distrito de Leiria já chegaram à Ordem dos Médicos e à Ordem dos Enfermeiros com pedidos de isenção de responsabilidade, justificados pela falta de segurança com que trabalham diariamente nas suas unidades de saúde.
Médicos e enfermeiros reclamam, sobretudo, a falta de recursos humanos, o que os obriga a trabalhar quase sem descanso e que os coloca em risco de “cometer erros” quando atendem os pacientes.
“Continuamos a trabalhar de forma responsável e o mais profissional possível. Cumprimos o que temos de fazer, mas temos de denunciar as condições que enfrentamos todos os dias. Há um défice muito grande de profissionais, o que se reflecte na qualidade da nossa prestação de cuidados e o risco de erro também aumenta, até porque estamos exaustos”, afirma Ivo Gomes, representante do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses.
O profissional de saúde recorda que há dois anos que os enfermeiros “não têm descanso”, quer nos centros de saúde, quer nos hospitais.
“Pressionámos o Ministério da Saúde para permitir que os Agrupamentos de Centros de Saúde tenham autonomia para poder contratar e depois só terão de informar o Governo. Exigimos o mesmo aos hospitais. É importante que o Governo e o Ministério da Saúde tenham resiliência e cumpram os compromissos que assumiram no Orçamento do Estado de 2018 e agora no último”, salienta Ivo Gomes, que considera também “um desgaste” na carreira destes profissionais “toda a luta” que mantêm com a tutela.
Os números
1.277
50
Uma enfermeira do hospital de Santo André em Leiria, no Centro Hospitalar de Leiria (CHL), confirma a “exaustão” e a falta de recursos humanos para prestarem um serviço de qualidade.
[LER_MAIS]“Preocupam-se com a acreditação, mas esquecem que têm dezenas de doentes horas à espera nas urgências. As dotações seguras estão longe de estar garantidas. Há dias em que se verificam quatro enfermeiros na zona amarela para 60 doentes”, denuncia, admitindo que os enfermeiros procuram “dar o seu melhor”.
Esta enfermeira salienta que “já nem se fala em humanização de cuidados, mas garantir com segurança os cuidados mínimos necessários”.
“Também há falta de auxiliares e, por vezes, temos de fazer o trabalho deles, como eles, também, algumas vezes, complementam o nosso trabalho”, constata.
Esta profissional de saúde tem cerca de dez feriados em carteira, que não gozou e não sabe quando poderá tirar esses dias.
“Há pessoas com 40 e tal horas por tirar e o hospital não permite que gozem esses dias. Quanto mais cansados estivermos mais risco há de errar”, alerta.
Segundo esta enfermeira, o HSA criou agora um formulário acessível a todos, para que cada um inscreva os dias e horas em que está disponível para serviço extra.
“É um regime de chamada, mas sem pagar as horas extraordinárias de acordo com o estabelecido”, acrescenta.
Segundo dados da Ordem dos Enfermeiros enviados ao JORNAL DE LEIRIA, só este ano já foram efectuados 1.109 pedidos de escusa de responsabilidade no CHL e 168 na Unidade de Caldas da Rainha no Centro Hospitalar do Oeste.
Este organismo explica, contudo, que um pedido de escusa de responsabilidade não equivale a um enfermeiro.
Ou seja, “um mesmo enfermeiro, em dias/turnos distintos poderá apresentar vários pedidos de escusa”. Se a falta de enfermeiros é uma constatação da classe, o mesmo reclamam os médicos, sobretudo, do serviço de urgência, que consideram não ter as condições ideais para prestarem um serviço de qualidade à população.
Segundo alguns clínicos, um gastroenterologista “não está capacitado” para fazer urgência. “Não é a sua especialidade e há sintomas a que pode não dar atenção e significar doenças graves”, exemplifica um médico. Na urgência de Leiria são muitas as vezes em que apenas um médico assegura todo o turno durante a noite e aos fins-de-semana.
“A nossa profissão não é como um pedreiro. Se estiver exausto pode colocar mal o tijolo, mas não mata ninguém”, desabafa uma médica, lamentando estar a assegurar a urgência geral e a dar apoio à Área Dedicada para Doentes Respiratórios (ADR).
Esta falta de condições tem também levado alguns clínicos a apresentar declarações de escusa de responsabilidade.
“Este é um acto de responsabilidade dos médicos, que alertam os seus superiores hierárquicos para a falta de condições, que os impede de actuar adequadamente perante o doente. Mas, independentemente de não ter condições, o médico faz, e tem de fazer tudo o que está ao seu alcance para poder tratar o doente”, salienta Carlos Cortes.
O presidente da Secção Regional Centro da Ordem dos Médicos (SRCOM) acrescenta que a própria Constitui- ção tem um artigo que refere que um funcionário público que não denuncia determinada situação, “acaba por tacitamente aceitá-la”.
“Por isso alerto sempre os médicos para reportarem internamente as dificuldades que têm. Caso contrário, estão a assumir que as aceitam”, alerta. Nos últimos dois anos deram entrada na SRCOM 50 declarações de escusas, das quais 28 reportam-se a este ano.
Do CHL chegaram 26 e duas vieram de Estruturas de Apoio Retaguarda (EAR) da região.
“A pandemia apagou um pouco as queixas. Independentemente de haver problemas, os médicos estão mais focados na questão pandémica. Sempre que há perigos mais agudizados da pandemia, sentimos isso perfeitamente”, explica Carlos Cortes, que se mostra “extremamente preocupado” com o que se passa nas urgências do Hospital de Santo André.
“É uma situação mesmo grave e estou a pesar bem as palavras.”
Doentes podem responsabilizar unidades de saúde
As declarações de escusa de responsabilidade são utilizadas quando um profissional de saúde pretende “pedir isenção de responsabilidade por sentir que não existem condições que garantam a segurança, porque sente que há limitações ao exercício profissional ou às regras de boa prática médica e de segurança, por temer constantemente pelas consequências dos seus actos, ainda que estes sejam os que se impõem pela boa prática médica”, refere um documento da Ordem dos Médicos.
Carlos Cortes explica que estas declarações diminuem a responsabilidade do clínico se houver consequências sobre o doente num acto médico, pois “ele alertou para as dificuldades em que estava a exercer a sua prática”. Se o doente quiser apurar responsabilidades, “por exemplo, num hospital público, a administração dificilmente já as poderá colocar em cima do médico que prestou aquele cuidado de saúde”.
“Se o médico não fizer esta declaração, a entidade pública pode pedir contas ao médico”, acrescenta. As declarações são enviadas ao superior hierárquico e o clínico pode ou não dar conhecimento à Ordem dos Médicos, que poderá confrontar a entidade patronal desse médico sobre a situação que ele referiu.
“Para se falar da escusa de responsabilidade, importa fazer um enquadramento prévio. Os enfermeiros são os profissionais de saúde que acompanham o utente com maior proximidade, detendo um conjunto de deveres que advém do seu código deontológico, do seu regulamento de exercício profissional e das demais leis vigentes”, explica o presidente do Conselho Directivo da Secção Regional do Centro da Ordem dos Enfermeiros, Ricardo Correia de Matos.
Essas obrigações “resultam da dimensão do objecto dos seus cuidados, que engloba a vida, a saúde e o bem-estar do alvo dos cuidados”.
Também o enfermeiro esclarece que estes profissionais de saúde “devem fazer tudo para proteger e defender tais valores”, entre os quais o “dever de vigilância”, que “detém relevância significativa para a protecção do utente”.
No entanto, “quando estão em questão cuidados de saúde, é fundamental existirem condições de segurança que permitam que os mesmos sejam realizados com qualidade, salvaguardando os melhores interesses do utente e do profissional”.
“O enfermeiro é sempre responsável e responsabilizado por todas as suas acções e omissões no decurso do seu exercício profissional. Agora, coisa diferente, é ser a ele imputado um conjunto de responsabilidades de terceiros por falta de condições, no caso, responsabilidades de hierarquias superiores e dos decisores institucionais ou políticos”, afirma Ricardo Correia de Matos.
Segundo o presidente da Conselho Directivo da Secção Regional do Centro da Ordem dos Enfermeiros, “é aqui que entra a escusa de responsabilidade, enquanto solução de natureza jurídica, que salvaguarda o profissional da sua natural incapacidade para dar resposta a todas as necessidades e solicitações, atento ao facto de não dispor das devidas condições para o fazer, sendo um mecanismo de defesa sobre a inoperância dos decisores”.
O profissional de saúde sublinha que a declaração de escusa “nunca o protegerá dos seus erros directos ou indirectos na prestação de cuidados que efectuar, mas afastará consequências para si do que depende das acções de terceiros, que as deverão ter”.
“É também uma forma de evitar que a responsabilidade sobre tais situações, acabe na sua esfera de responsabilidade de forma solidária com outros, esses sim, com culpa. Releva também que tal atitude de escusa de responsabilidade, pretende também indirectamente, chamar atenção do usuário dos cuidados de enfermagem para a necessidade deste perceber que, o profissional com esta actuação também procura defender o melhor interesse do cidadão, para que também este esteja informado e exija soluções que o defendam”, conclui.