A pouco mais de dez quilómetros de Leiria, há uma aldeia onde o sentido de comunidade ainda se mantém e que, a cada dia que passa, se renova e reforça.
Nas Fontes, a dois passos da nascente do Rio Lis, os filhos da terra e outros, vindos de fora, mas que a mesma terra adoptou, são uma mole imparável dedicada a iniciativas comuns.
Se lhes pedissem, provavelmente, seriam capazes de levar às costas a serra que abraça a aldeia. As ideias surgem de conversas de café na associação local. Ninguém o esconde. Pelo contrário, têm orgulho na facilidade com que todos embarcam nos projectos comuns.
“A mais recente foi ‘e se iluminássemos a aldeia com lanternas feitas a partir de materiais reutilizados?’”, conta Nuno Ribeiro, antigo presidente da Associação Nascente do Lis.
Em tempos recentes, não havia memória de as Fontes se terem aventurado numa missão com espírito natalício e a coisa foi para frente.
Durante os 12 meses do ano, há muitas ideias lançadas, algumas concretizadas por tradição e muitas que, rapidamente, se tornarão tradição, por força das mãos que as suportam.
“Basta chegar, lançar uma ideia e começar a trabalhar nela. Rapidamente, haverá mais gente a ajudar. Está a ver ali? Um rapaz a montar umas escadas para pôr mais uns vasos na capela e já estão a ir pessoas para lá, para ajudar. Ninguém os mandou ir. Foram. Há gente que nem sequer cá vive, mas sente essa pertença e vem dar uma mão.”
E foi assim que se chegou à mais recente ideia, a espécie de “aldeia de Natal” que o não é bem.
O grupo de “solteiros e solteiras, casados e casadas, rapazes, raparigas, homens e mulheres” apenas queria dar um pouco de colorido a um local que não precisa de artifícios para ser belo.
As ruas, cantos e recantos da localidade foram decorados com lanternas natalícias criadas com materiais reciclados.
“Reciclados não! Reutilizados”, sublinha Nuno Ribeiro, repondo a verdade dos factos.
“O mesmo material que usamos para montar a estrutura em cima do rio, onde fazemos a festa da padroeira, é o mesmo que estamos a empregar agora para montar o Natal. Guardamos tudo!”
[LER_MAIS]E se, como se percebe pelo perfil apertado das ruas, falta o espaço para estacionar carros, porém, para melhorar a localidade com decoração alusiva à quadra, o grupo de voluntários pode contar com o “terreno do Filipe”, para a tradicional fogueira da noite de Consoada ou com o quintal da dona Maria dos Anjos, para criar o presépio e montar a árvore de Natal.
“A iluminação, em parte, foi fornecida pela Câmara Municipal de Leiria, pela junta de freguesia, pela paróquia das Cortes e pela associação, e o restante foi adquirido por habitantes e nós aplicámos onde achámos que fica melhor”, diz Nuno, anunciando que as luzes se acendem, diariamente, das 18 às 00 horas.
Não existe outro objectivo para este esforço comunitário a não ser o amor.
O amor pela aldeia, pelo ambiente, pela comunidade e, no fim de contas, por uma família que vai além dos simples laços de sangue. “Isto não é exclusivo das Fontes.
Aqui ao lado, na Reixida, também se lançam em desafios destes”, explica o antigo presidente da associação, ressalvando que, embora, noutros tempos, houvesse uma certa rivalidade, hoje, existe entreajuda e cooperação.
Menos alcatrão, por favor
Noutros locais, pede-se prioridade às autarquias para mais alcatrão, mais estradas e mais estacionamentos, mas, nas Fontes, a população sabe que isso só tiraria brilho à localidade.
“Em tempos, a estrada nem tinha saída. Vinha aqui só quem conhecia e queria mesmo vir cá. No fundo, continua assim. É preciso sair-se da estrada principal para chegar cá e, depois, regressar”, descreve Nuno Ribeiro.
Mesmo assim, todos os domingos, há viaturas estacionadas por todo o lado. São de gente que vem para fazer um passeio pelos percursos pedestres que, inevitavelmente, passam pela nascente do Rio Lis, rodeados de mata autóctone de carvalhos e pelo omnipresente calcário.
O ponto de encontro é a associação, fundada há 32 anos, aberta todos os dias, e que é também o ponto final, onde todos – ou quase – param para um café e um pastel de nata, no fim de uma caminhada.
É também ali o centro nevrálgico e de comando de praticamente tudo o que acontece na terra. Quem o afiança é o presidente, Francisco Sousa.
Tem um mandato de dois anos, mas sem data para terminar, porque a terra é pequena e a lista é sempre única e com maioria absoluta garantida.
“Somos presidentes, depois tesoureiros, depois secretários e voltamos a presidentes, se for preciso.” Para ver os amigos, basta ir ali e, rapidamente, aparecerá alguém e, hoje, é também dia de festa e de bolo.
Rafael Romão, um dos elementos do grupo, completou 51 anos e prometeu trazer um doce e tratar da conta do bar. Prometeu e cumpriu. Em vez de ficar em casa, abriu a festa a todos os que quiseram participar.
É uma espécie de aquecimento para ir buscar uma carrada de ramos para finalizar as decorações.
Falta ainda acabar de pintar as grandes letras com a palavra “Fontes”, colocadas junto à capela, tarefa que o artista plástico Bruno Gaspar e o filho cumpriram diligentemente.
São dois dos que vêm de fora para ajudar. Descem das Torrinhas, já no concelho da Batalha, e juntam-se aos amigos.
“Ajudei a criar as lanternas em materiais reutilizados”, conta o criativo que diz esperar ver a iniciativa aumentar de qualidade nos próximos anos, à medida que novas ideias surgem.
“É a primeira vez e isto come algum tempo ao pessoal”, reconhece. Em busca de um lar Há muita gente nova a procurar as Fontes. Alguns saíram para estudar e regressam a casa, para criar um lar, outros vêm de fora em busca da paz e da beleza locais.
Até à pandemia, todas as terças-feiras à noite, aconteciam ali caminhadas até ao topo da Serra da Maúnça, actividade que congregava dezenas de pessoas semanalmente.
Agora, um grupo de resistentes está, com sucesso, a reactivar a iniciativa.
A própria aldeia, de ruas alcantiladas entre a Senhora do Monte e a Maúnça, atrai cada vez mais visitantes e até alguns bons garfos, atraídos pelo restaurante local, o Lagar do Sapateiro, projecto de turismo rural, instalado num edifício com 130 anos, projecto de Eulália e do marido, António Sousa.
Apesar disso, a resistência de parte da população à abertura de novas estradas e caminhos faz parte da vontade de preservar aquilo que é único na localidade.
“Parte do rio ainda está virgem. Se se fizerem caminhos e passadiços por todo o lado, ele deixa de ser virgem e a pressão dos visitantes fará com que os animais fujam. Temos lontras, cágados, patos que fazem ninhos aqui”, explica o antigo presidente da associação.
Aponta para o leito do Lis, que se estende em frente ao terraço da actual sede da colectividade, construída por trabalho voluntário e concluído em 1994, e explica como são colocadas vigas e tábuas, com “20 anos de uso”, para construir um deck em cima do qual se montam palcos e tasquinhas no Verão.
A organização da festa da padroeira vai rodando entre associação e a comissão fabriqueira da capela.
“Só muda o nome do órgão que monta tudo, porque as pessoas são, basicamente, as mesmas. Isso e o destino dos lucros. Num ano para um, e, no seguinte, para outro”, refere, por seu turno, Nuno Sousa.
Do outro lado da velha ponte, ao lado da capela de Nossa Senhora de Lourdes, um dique é fechado desde há 20 anos, quando chega o Verão, para criar uma espécie de praia fluvial, com água pelos joelhos, onde pais e crianças se refrescam e brincam.
“É uma coisa para as crianças. Mas, num dia de calor, dá para refrescar”, brincam ambos os responsáveis.