Depois da China, a Europa começou a sentir os efeitos do SARS-CoV-2 pouco depois do início de 2020.
No dia 2 de Março, o novo coronavírus foi detectado pela primeira vez em Portugal e, no dia 16 de Março, regista-se a primeira infecção no distrito de Leiria.
Trata-se de um homem de 67 anos internado no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, mas originário da freguesia de Santa Catarina, no concelho de Caldas da Rainha.
Cinco meses depois, a situação está longe de estar controlada, mas o Serviço Nacional de Saúde tem dado a resposta adequada às necessidades.
Ana Silva, médica de Saúde Pública, denuncia que há “muitos casos” que têm surgido com a vinda dos emigrantes. “Tivemos um surto ligado a um emigrante, que contagiou toda a família”.
“As pessoas não tomam os cuidados que deviam. Os jantares e festas estão na ordem do dia. As reuniões familiares têm sido desastrosas”, criticou a responsável. A médica insiste nos três cuidados “fundamentais” que devem ser cumpridos: distanciamento, uso de máscara e higienização das mãos.
Bombeiros transportam presidente
“Adormeci, acordei e fomos felizes para sempre.” É assim que Carlos Carvalho resume, meio a brincar, a sua experiência como doente Covid- 19.
O presidente da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários da Marinha Grande e professor na Escola Secundária Calazans Duarte foi dos primeiros doentes da região a serem diagnosticados com o vírus SARS-CoV-2 e a estarmos nos cuidados intensivos do hospital de Santo André, em Leiria.
Foi também o primeiro a sair, o que obrigou a unidade hospitalar a encontrar soluções para dar resposta aos novos desafios. As suspeitas começaram com febres de 39º que não baixavam com a medicação.
A Linha Saúde 24 ainda não tinha a febre como sintoma incluído, pelo que Carlos Carvalho nunca conseguiu ser atendido. Foi aguentando o estado febril cerca de 10 dias. “Assim que ouvi no noticiário que a Saúde 24 tinha alargado os sintomas à febre, liguei de imediato. Estive quase uma hora até ser atendido e a seguir activaram o INEM”, lembra.
Foi levado pelos elementos dos ‘seus’ bombeiros. No hospital de Leiria deu entrada na tenda montada pelos Voluntários de Leiria para a triagem e esperou. “Na sala ninguém [utentes] tinha máscara. Ainda não se dizia que era necessário.”
Carlos Carvalho não se recorda do dia, mas sabe que foi depois das escolas fecharem. O teste provou que estava positivo e o raio x aos pulmões evidenciava uma mancha “anormal”.
“Alguém me diz: vamos pô-lo a dormir um bocadinho. Acho que foi a última coisa que ouvi. Acordei com um médico à minha cabeceira a dizer que correu tudo bem… oito dias depois”, revela.
O professor explica que foi necessário o coma induzido, porque “dificilmente alguém acordado consegue estar entubado, com um tubo larguíssimo”.
Ao ser entubado, “passa a ser a máquina a fazer o trabalho do pulmão, dando-lhe tempo para recuperar sem esforço”. Recuperado, Carlos Carvalho saiu dos cuidados intensivos, mas ainda estava positivo.
“Primeiro problema: [LER_MAIS]para onde me iriam transferir? Fiquei três dias num quarto nas urgências, onde ninguém entrava. Quando dei negativo continuei a não poder sair, porque apanhei uma bactéria hospitalar (que não trouxe qualquer problema).” Mas, mais um obstáculo.
“Era o primeiro negativo a ter alta, mas tinha a bactéria e precisava de ficar no hospital. Onde? Fui para um quarto fechado. Tive alta na sexta-feira de Páscoa”.
Carlos Carvalho desconfia que pode ter sido contagiado num centro comercial em Leiria. “Na altura não se usava máscaras. Andei por lá algumas horas e havia muita gente.”
A mulher também foi infectada, mas os dois filhos testaram negativo. No hospital cruzou-se com a mulher, cujos sintomas incluíam a falta de olfacto e paladar e má disposição.
“Mas ela foi para casa, onde ficou em isolamento.” O presidente dos bombeiros afirma que se sente perfeitamente bem. Nos dias a seguir a ter saído do hospital ainda denotava alguma dificuldade respiratória a subir escadas, mas aos poucos passou.
Carlos Carvalho sabe que não contaminou ninguém das suas relações. “A escola tinha fechado há uma semana e, assim que se proibiu a entrada a civis no quartel, deixei de aparecer por precaução.”
Depois de tudo, o docente ofereceu-se para doar plasma. “Fui a Coimbra, mas fiquei desiludido por não poder ajudar os outros, mas é preciso ter uma veia muito boa”, explica.
Ainda não sabe se está imune à Covid-19 nem quanto tempo durará a imunidade, mas continua a usar máscara. “Tudo correu muito bem porque os testes estavam disponíveis, havia camas nas urgências e nos cuidado intensivos, ventiladores e médicos. Daí a importância de não ficarmos doentes todos ao mesmo tempo.”
“A parte técnica foi fabulosa. Todos são de uma dedicação extrema. A parte administrativa nem por isso. Ninguém sabia onde estavam os meus bens. Só cerca de 15 dias depois é que consegui recuperar as coisas.”
Cerca de dois meses depois foi contactado pelo hospital com perguntas sobre pensamentos suicidas. “Fiquei a pensar que se me perguntaram isso é porque há quem possa passar por isso…”
Capitania encerrada
Começou por sentir dores de garganta, com dificuldade em engolir. Mas sem problemas respiratórios. Uma noite chegou aos 38º de febre e decidiu ir às urgências.
“Foi-me diagnosticada uma amigdalite e prescreveram um antibiótico para três dias. No dia 4 de Julho não me sentia melhor e voltei às urgências”, conta Paulo Agostinho, comandante da Capitania da Nazaré, que hoje entrega o posto ao seu sucessor (ver última página). Foi-lhe novamente diagnosticada uma amigdalite com abcesso, que teria de ser “lancetado”.
“Como precisava da intervenção de um otorrino encaminharam- me para o Hospital da Luz, em Lisboa, onde fiz uma série de exames. Já estava no final da consulta quando a médica, presumo que mais por descargo de consciência, mandou fazer o teste da Covid-19.”
Foi-lhe passado um antibiótico mais forte para tomar de 12 em 12 horas. Ao segundo comprimido melhorou mas, entretanto, recebeu o resultado do teste, que deu positivo.
Passou a ser seguido no Centro de Medicina Naval da Marinha. Ficou em casa isolado da família, sem qualquer outra sintomatologia. Os elementos da capitania e Polícia Marítima da Nazaré foram testados e colocados em quarentena. A capitania fechou portas durante 15 dias. Paulo Agostinho manteve-se ao serviço, em teletrabalho.
“Ninguém foi infectado. Todos os elementos com quem tinha estado foram testados na altura e 15 dias depois. Todos deram negativo.” A família não realizou o teste, mas nem a mulher nem os filhos desenvolveram sintomas. Em casa passou a fazer as refeições sozinho, utilizando material descartável, que depois de usado era acondicionado e deitado no lixo.
“Estive sempre bem e foi relativamente fácil mudar a rotina em casa.” Paulo Agostinho realizou novo teste 15 dias depois da infecção ter sido detectada, cujo resultado foi “indeterminado”.
Ao repetir no dia seguinte, a positividade mantinha-se. A situação repetiu-se uma semana depois, mas uma nova análise no dia seguinte já revelou que estava negativo. “Tive todo o apoio da Marinha. Antes já tínhamos criado grupos fechados para os turnos, prevenindo eventuais contágios. Mas ninguém foi infectado além de mim”, salienta.
O comandante desconhece onde foi infectado. “O único sítio diferente onde ia era ao supermercado.”
Enfermeira em casa
Começou a sentir-se constipada, com o nariz entupido e dores musculares. Aos poucos, o cansaço tornou-se “extremo” a ponto de ter dificuldade em realizar as tarefas diárias.
“No trabalho fazíamos as visitas domiciliárias e no dia-a-dia frequentava outros locais, como supermercados. Não faço ideia onde fui infectada”, conta Margarida Araújo, enfermeira. No final de Junho, depois de cerca de uma semana com sintomas sem melhoria, pediu para lhe ser feito o teste. “Fui a Lisboa para ter os resultados mais rapidamente.”
No dia seguinte chegou a notícia: positiva. “Nem queria acreditar. Fiz o teste por descargo de consciência. De repente, senti uma adrenalina e quis pôr tudo em ordem. Tinha medo que me acontecesse alguma coisa. É o medo do desconhecido”, revela.
Também Margarida Araújo não contaminou ninguém. As colegas, o marido e os filhos, todos testaram negativo. Os filhos mantiveram algum isolamento, um dos quais regressou a Lisboa, onde trabalha (embora estivesse em teletrabalho). O marido apenas mudou de quarto.
“Como tenho a sorte de ter uma vivenda foi mais fácil de gerir. Era eu quem preparava as nossas refeições, de máscara, e almoçávamos juntos na rua. Se houve alguma coisa boa nisto foi ter podido desfrutar mais da casa e do cão, como nunca antes o tinha feito”, confessa a enfermeira.
Apesar de ser técnica de saúde, o medo estava lá. “Na primeira semana quase não dormi. Tinha medo de adormecer e não saber o que podia acontecer, até porque tenho algumas co-morbilidades associadas. Mas como as coisas foram correndo normalmente consegui desligar.”
A rotina em casa pouco mudou: “só intensifiquei a limpeza”. “Se o meu marido não estivesse tão presente teria sido muito mais difícil. Agora sinto-me bem, mas às vezes pergunto-me se de repente não pode surgir alguma coisa associada.”
Margarida Araújo retirou uma lição: “mais uma vez ficou provado que devemos aproveitar cada momento da vida e que não devemos abdicar dos pequenos prazeres. Estes momentos também servem para vermos quem são os verdadeiros amigos e até há quem nos surpreenda pela positiva.”
Namoro à janela
Um empresário de Leiria, que prefere não ser identificado, voltou aos tempos de antigamente e passou a namorar à janela. A mulher foi infectada há poucos dias com o SARS-CoV- 2. Está isolada no quarto. A filha de 9 anos e o marido testaram negativo e têm mantido a distância obrigatória.
“Estamos em quartos separados. Por acaso, temos condições para isso. Ela não sai do quarto. Coloco-lhe as refeições à porta e no final ela deixa tudo no mesmo local. Depois de desinfectar o tabuleiro e a loiça com lixívia ainda coloco na máquina. Como temos jardim, ela vai à varanda e falamos por ali. É recuperar o namoro de antigamente à janela”, brinca o empresário.
O homem confessa que não é fácil gerir a casa e as emoções, sobretudo da filha. “Mesmo nós os dois tentamos manter a distância, mas de vez em quando tem de haver um abraço.”
Outra dificuldade tem sido cozinhar. Pouco habituado à confecção de alimentos, os primeiros dias foram mais difíceis, mas agora pai e filha já fazem bolos. Depois de saber que havia um caso positivo na família, os elementos mais próximos foram realizar o teste. Na casa do empresário, apenas a mulher testou positivo.
“Tivemos de chamar a garota e explicar-lhe o que se estava a passar para perceber que tinha de ficar afastada da mãe. Do círculo laboral ninguém foi infectado, o que é um alívio”, confessa.