Dificuldade de acesso às consultas, aumento da carga horária com exaustão dos médicos e penalização em virtude da prescrição de medicamentos e exames complementares de diagnóstico são algumas das consequências que os médicos alertam que podem surgir com a reorganização dos cuidados de saúde que o Governo prevê avançar no início do próximo ano.
Com o aumento do número de utentes por ficheiro nas Unidade de Saúde Familiares (USF) modelo B, a tutela acredita que 250 mil portugueses vão ganhar médico de família. Dando mais horas aos profissionais hospitalares, o Ministério da Saúde prevê diminuir os tempos de espera para consultas e cirurgias.
No entanto, onde o Governo vê rosas, os médicos encontram espinhos, advertindo para o prejuízo que as medidas vão ter, sobretudo, sobre a população. “A aposta é na quantidade em vez da qualidade”, alerta Vitória Martins, vice-presidente da comissão executiva da Federação Nacional dos Médicos (FNAM).
“Os cidadãos vão ter uma diminuição do acesso ao seu médico de família e médicos exaustos a trabalhar nas urgências e com menos capacidade para depois fazerem trabalho de consultas e cirurgias”, aponta ao JORNAL DE LEIRIA, advertindo para a contínua saída de profissionais do Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Segundo uma nota, o Governo defende a transição de todas as USF para o modelo B, onde os “profissionais recebem uma remuneração-base e um pagamento variável, associado ao desempenho, designadamente pelo alargamento da lista de utentes, pela realização de domicílios e pela qualidade evidenciada no acesso e na assistência clínica”.
Com o novo regime de dedicação plena os profissionais das USF B os médicos passam a “ter como base um período normal de trabalho de 35 horas semanais, com aumentos ajustados ao desempenho”. “Por sua vez, os médicos dos hospitais têm como base um período normal de trabalho semanal de 35 horas, às quais acrescem cinco horas complementares de actividade programada, num total de 40 horas semanais. A prestação das cinco horas confere direito a um suplemento correspondente a 25% da remuneração base mensal”, afirma o Governo.
“O Governo está a dar suplementos para os médicos terem muitos utentes, mas está a retirar-lhes o prémio de trabalhar com qualidade. Se calhar, os utentes até vão ter médico de família, mas o seu acesso vai estar altamente condicionado”, afirma Vitória Martins.
Rafael Henriques, médico de Medicina Geral e Familiar na USF Martingil, em Leiria, e dirigente da FNAM, acrescenta que “se já com listas médias de 1550 utentes ou 1917 de unidades ponderadas é difícil, se cumprirmos os planos de vigilância de saúde infantil, de saúde materna, a vigilância adequada do diabético ou ao hipertenso, é preciso um horário de 47 horas”.
“Metem este vício para esticar ao máximo a lista de utentes, para os médicos terem o aumento suplementar remuneratório e acabar-se com as listas de utentes sem médico, mas estamos a condicionar a acessibilidade. Com listas completamente sobredimensionadas não vamos dar resposta e vai diminuir-se a qualidade dos serviços”, reforça Rafael Henriques.
Este médico adianta que no modelo B das USF já existe um conjunto de indicadores de desempenho: “acessibilidade, qualidade de serviço, satisfação dos doentes, gestão da doença ou da saúde”. O novo índice de desempenho de equipa acrescenta indicadores como a prescrição de exames complementares de diagnóstico e de medicação e urgências evitáveis. “Isso não está quantificado. Não sabemos como vai ser, que peso tem, além do princípio em si que é imoral.” Como se vai evitar uma ida à urgência? “Prendendo o utente no centro de saúde”, ironiza Vitória Martins, ao avisar que depender do índice de desempenho a prescrição dos meios complementares de diagnóstico e as receitas é, “eticamente, altamente reprovável”.
Vitória Martins não tem dúvidas, contudo, que os médicos “vão prescrever de acordo com aquilo que acham que é o indicado para o doente e vão continuar a passar os meios complementares diagnósticos que acham que são indicados”, mesmo que possam “vir a ser penalizados por causa disso”.
O aumento do número de horas de trabalho vai também ser um problema na exaustão dos médicos, já de si esgotados com inúmeras horas extraordinárias, muito acima das 150 previstas actualmente no seu contrato.
Segundo explica aquela dirigente, um médico que faça uma urgência 24 horas no dia seguinte tem normalmente agendado trabalho, como consultas ou cirurgias. Agora, quando saem do turno “têm direito a descansar com prejuízo daquele horário”, ou seja, sem terem de compensar esses agendamentos. As novas regras do ministro Manuel Pizarro fazem com que os médicos tenham de compensar as oito horas de trabalho, se “quiserem usufruir do direito ao descanso”.
“Um médico que faça muitas urgências durante a semana, e infelizmente há, como a medicina interna e a cirurgia, para compensar esse horário, porque não se sente capaz de trabalhar no dia seguinte, passará a vida no hospital, porque tem de ir trabalhar fora de horas e ao sábado”, acrescenta Sandra Hilário, médica cirurgiã no Centro Hospitalar de Leiria e dirigente da FNAM.
Vitória Martins constata: “Quem é que quer ser operado por um médico que esteve 24 horas a trabalhar sem ter descansado? Eu não”, afiança, ao destacar a “exaustão” que está a ser promovida por quem tutela a saúde.
Dedicação plena vs exclusividade
Os médicos que usufruem da exclusividade recebem uma verba para se dedicarem a tempo inteiro ao Serviço Nacional de Saúde (SNS). Esse regime chegou ao fim, mantendo-se apenas em vigor para quem já usufrui dele. Em alternativa, o Ministério da Saúde criou o regime de dedicação plena no SNS, que irá permitir aos médicos em início de carreira aumentos de “cerca de 33%”. A adesão será voluntária, diz a tutela.
“Na dedicação plena não estamos a premiar um médico por estar a trabalhar exclusivamente no SNS. Estamos a premiar o médico para ele trabalhar até cair para o lado. Isto vai ser mau para a população”, adianta Vitória Martins.
Neste momento, os médicos “são os únicos profissionais de saúde que fazem 40 horas”, ou seja, “trabalham mais dois meses do que os outros colegas”. Com a dedicação plena está a ser proposto “trabalhar mais quatro meses”, aponta Sandra Hilário. “Ou seja, estão a premiar quando as pessoas estão a ultrapassar o limite legal das horas extraordinárias e a prejudicar o descanso quando as pessoas trabalham à noite. Portanto, podemos ter médicos nas urgências, mas são médicos exaustos, que vão trabalhar no mínimo mais dois meses por ano, o correspondente às 250 horas extraordinárias que está nesse regime de dedicação plena”, frisa Vitória Martins.
Segundo explica, os médicos tinham um suplemento ao seu salário para as actividades específicas.
Por amor à camisola, à prática clínica e ao doente, os médicos têm excedido largamente as horas extraordinárias, “com consequências graves para a sua vida pessoal”. Mas, estão a chegar ao limite e garantem que vão pôr ponto final ao excesso das horas a mais, precisamente por quererem “dar o melhor à população”.
Sandra Hilário lembra que a exaustão e o burnout que os médicos começam a experimentar podem ter implicações graves nos utentes, pois, admite, a possibilidade de erro aumenta. O JL pediu esclarecimentos ao Ministério da Saúde, mas não obteve resposta.
Deputados pedem médicos de família para Leiria
PS e PSD apresentaram moções na última Assembleia Municipal de Leiria, e pedem mais médicos de família para os cidadãos do concelho. Os dois documentos versam sobre o mesmo problema, mas as duas bancadas não chegaram ao entendimento para criar apenas uma moção.
“As teimosias ideológicas do Governo PS, de que é exemplo o fim das parcerias públicas-privadas na área da saúde, que segundo um relatório do Tribunal de Contas geraram poupanças para o Estado de 203,3 milhões de euros entre 2014 e 2019, a aversão à complementaridade entre o Serviço Nacional de Saúde e o sector social e privado (…) têm-nos conduzido ao estado actual da área da saúde: incapacidade do Estado de garantir assistência médica aos cidadãos quando e dela necessitam.” Este foi o parágrafo da discórdia, que o PS se recusou a aceitar.
Segundo a moção apresentada pela deputada Margarida Sá (PSD), em Junho de 2022, no concelho de Leiria, faltavam sete médicos de medicina geral e familiar. Naquela data, dos cerca de 141 mil utentes inscritos, 14500 não tinham médico de família. “Hoje, dos 143041 utentes inscritos, 38452 (cerca de 27%) não têm médico de família. Nas unidades de cuidados de saúde primários faltam 24 médicos de família. Existem polos de saúde sem qualquer médico ao serviço, como é o caso da Bajouca, Milagres, Ortigosa, Regueira de Pontes, Colmeias, Bidoeira e Santa Eufémia.”
Na moção apresentada por Paulo Pedro, o PS acrescenta que a falta de médicos “compromete o funcionamento das diferentes unidades e extensões de saúde, deixando milhares de utentes com acesso limitado aos cuidados de saúde primários”, nomeadamente, uma população envelhecida “caracterizada pela prevalência da doença crónica”.
As Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados “são as mais afectadas”, dada a sua extensa distância das sedes, o que “dificulta a deslocação das pessoas mais vulneráveis” aquando do seu encerramento.
“Na Bajouca e no Coimbrão, o encerramento não se deve à falta de médicos, mas de assistentes técnicos.” Paulo Pedro referiu ainda que este ano assistiu-se à aposentação de 30 médicos, 12 rescisões e três saídas por concurso de mobilidade. Acresce a isto o aumento de utentes na ordem dos dois mil por ano, o que “agrava o rácio de cobertura”.
Porto de Mós
Autarcas contra proposta de USF
A proposta de criação de uma Unidade de Saúde Familiar (USF) em Porto de Mós mereceu o repúdio dos eleitos na Assembleia Municipal (AM). Na sessão realizada na sexta-feira, vários deputados expressaram a sua oposição, por discordarem do fecho dos pólos de Alqueidão da Serra, São Bento e Arrimal/Mendiga. “Não temos rede de transportes públicos que permita às pessoas vir à sede de concelho”, advertiu Rita Cerejo (PS). Também Clarisse Louro, presidente da AM -, que recebeu uma carta dos presidentes de junta a solicitar o agendamento de uma reunião com o coordenador do Agrupamento de Centros de Saúde do Pinhal Litoral-, disse não se rever “num modelo de USF que feche pólos”, por entender que “é mais benéfico os médicos e enfermeiros irem à extensão”. Partilhando desta visão, o presidente da câmara criticou ainda a discrepância salarial entre médicos das USF e das Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados. Estes últimos ganham “menos de 2000 euros brutos” e os da USF “comprimindo objectivos, podem ganhar 5000 euros”. MAS