A tarde envelhece devagar e na mesma sala do Museu de Leiria estão reunidos antigos trabalhadores da mina da Guimarota, familiares e cientistas. É um momento raro. O livro de achados que inscreve Leiria na lista de lugares do mundo obrigatórios para a paleontologia tem 150 milhões de anos mas alguns capítulos continuam por escrever. Entre os fósseis identificados há décadas por investigadores alemães sobressai a descoberta do primeiro esqueleto articulado, e quase completo, de um mamífero primitivo do Jurássico superior. E também restos de crocodilos, tubarões, dinossauros terópodes e saurópodes, répteis voadores (pterossauros) e aves primitivas, conchas de bivalves e gastrópodes, peixes, tartarugas e lagartos, todos protagonistas de um pântano costeiro, pontualmente invadido por água salgada, com clima tropical e vegetação exuberante. “Uma mina de história e de valor científico que tem sido ignorada”, considera Thomas Silva, que convive com o assunto desde a infância. No horizonte, perfila-se o novo desafio: como reactivar a memória de um legado único?
Na segunda metade do século XX, a mina da Guimarota ficou conhecida internacionalmente como “o lugar do mundo mais rico em mamíferos do Jurássico”, explicou a geóloga Anabela Quintela Veiga, docente do Politécnico de Leiria, na palestra com que o Museu de Leiria celebrou o dia da cultura científica. “É incrível pela diversidade e sobretudo pela variabilidade dos animais que ali morreram”, concorda Bruno Camilo Silva, paleontólogo e presidente da Sociedade de História Natural de Torres Vedras. “Há uma Guimarota e não há mais nenhuma”.
O primeiro a interessar-se pelos fósseis com 150 milhões de anos preservados no carvão – muitos dos quais com apenas centímetros ou milímetros – e responsável por iluminar a Guimarota em termos científicos foi o paleontólogo Walter Georg Kühne, da Freie Universität, em Berlim, na Alemanha. Chegou em 1959, atraído a Portugal pela fama dos dinossauros da Lourinhã. Depois dele, destacam-se as campanhas lideradas em Leiria pelos discípulos Bernard Krebs e Siegfried Henkel, em 1971 e entre 1973 e 1982, que beneficiaram de financiamento do Estado alemão hoje equivalente a meio milhão de euros. Os fragmentos recolhidos na mina da Guimarota e enviados para a Alemanha (outros encontram-se no Museu Geológico, em Lisboa) estão na origem de artigos científicos publicados ao longo de décadas. Mais de uma centena, estima-se, assinados por investigadores de diferentes universidades e países.
As jóias do Jurássico
Até hoje, o achado mais valioso proveniente da Guimarota é o Henkelotherium guimarotae, a já referida primeira descoberta de um esqueleto articulado, quase completo, de um mamífero primitivo do Jurássico superior, que é o representante mais antigo da classe Theria em que se incluem os mamíferos modernos (ocorrida em 1975).
Outros famosos, o Machimosaurus hugiio, o crocodilo mais comprido do Jurássico, com 10 metros; e a Portugalophis lignites, a segunda (ou terceira) cobra mais antiga do mundo.
A exploração da mina da Guimarota com o objectivo de obter lenhite para o circuito comercial que sustentava fornos de cal instalados na proximidade decorreu de 1920 a 1960 e Clementina Fernandes (actualmente com 85 anos) não esquece os dias a brincar entre o carvão nem as visitas, pela mão do pai, Luís Fernandes, o capataz, ao miolo de galerias debaixo de terra. Quando Walter Georg Kühne começou a procurar fósseis na Guimarota, acompanhado pela mulher, Ursula, e um número reduzido de estudantes alemães, em 1959 e 1960 e em 1963, Clementina juntou-se ao grupo na tarefa de separar, à superfície, de entre a escória deixada no exterior, os fragmentos com interesse paleontológico dos restantes. “Era um ambiente bom, de convívio, amigável”. Pobre em carbono, a lenhite da Guimarota revelou-se rica em vestígios de animais e plantas que permitem compreender a evolução da vida no planeta Terra. O primeiro grande sucesso está registado no dia 5 de Outubro de 1959: o esqueleto de um mamífero.
Mineiros e cientistas
Na época, Thomas Silva, ainda criança, vivia com os pais num terreno limítrofe. No edifício, de quatro apartamentos, alojou-se, precisamente, Walter Georg Kühne. Naquele tempo, a Guimarota era “uma série de quintas” entre “meia dúzia de casas” e um “caminho carroçável” para as Cortes. E em redor da boca da mina, “em cima da terra, não havia erva que crescesse em lado nenhum, era um deserto, um deserto preto”, ocupado por “dunas de carvão”.
As campanhas da Freie Universität de Berlim em Leiria são retomadas na década de 70 – sob o comando de Bernard Krebs e Siegfried Henkel – e António Pereira é um dos novos rostos contratados para descer ao emaranhado de túneis, já depois de retirada a água que os inundava e garantidas as condições de segurança com electricidade e sistema de ventilação. Primeiro, durante um mês, em 1971. Depois, com um salário de mil escudos por semana, de 1973 a 1976. Ele e outro mineiro, António Soares, a extrair das entranhas do globo as respostas desejadas pela ciência. Oito horas diárias, de segunda a sábado, um repetir de gestos a escorar as galerias com madeira de pinho e a acumular, com o auxílio de um martelo eléctrico, às vezes deitados, dada a escassez de espaço, aproximadamente mil quilos de carvão por dia, em média, que subiam num vagão sobre carris puxado por um cabo de aço. Escolhe um instante para demonstrar o perigo e a dureza do quotidiano, no conjunto de recordações: “Íamos pelo poço abaixo e as luzes do gasómetro começaram a mudar de cor”. No caminho, a 50 metros, “estava o carvão em calda”. O sinal do gasómetro espoletou a fuga. “Tínhamos lá ficado”.
Na escolha, além do salário, havia prémios. Segundo Anabela Quintela Veiga, “o fragmento de uma sardanisca” seria “compensado com 70 escudos”, mas o vestígio de um mamífero “podia variar entre 150 e 250 escudos”, a somar à remuneração fixa, de 2 mil escudos por mês, para a maioria das mulheres.
Com Siegfried Henkel, surge um novo processo de tratamento químico e lavagem. “Se, por ventura, no que fosse crivado, houvesse já ossos, eram separados, claro está, mas tudo o que era mais pequeno ia para uma bacia que se enchia de água e soda cáustica”, descreve Thomas Silva, que ali trabalhou, depois das aulas, além de actuar como tradutor junto do pessoal estrangeiro. “Ficava tudo numa espécie de sopa, era crivado outra vez” e “lavado, lavado e lavado, como o garimpeiro que está à procura do ouro”.
Uma cidade subterrânea
A mina da Guimarota totaliza 20 galerias até 150 a 250 metros de profundidade, estima ainda Thomas Silva. “É uma cidade subterrânea com nove, dez quilómetros de comprimento que vai até à Quinta de São Venâncio”.
Em 2019, Thomas Silva entregou para investigação os únicos carvões provenientes da Mina da Guimarota que estão à guarda do Museu de Leiria. Uma tecnologia nunca antes utilizada no contexto em causa revelou novos fósseis de animais com 150 milhões de anos, semelhantes a outros, já conhecidos desde a segunda metade do século XX. Entre 2021 e 2022, Bruno Camilo Silva, Vítor Carvalho e Edgar Mulder, do Centro de Investigação em Paleobiologia e Paleoecologia da Sociedade de História Natural de Torres Vedras, identificaram dentes e escamas de peixes, ossos indeterminados, elementos de tartarugas e crocodilomorfos e o provável úmero de um mamífero. Os resultados foram apresentados pela primeira vez ao público não especializado durante a palestra de 25 de Novembro, no Museu de Leiria.
Para expor toda a informação preservada nos 19 fragmentos de carvão, os investigadores recorreram a microtomografia computorizada de alta resolução, uma técnica não destrutiva, com o apoio da empresa Micronsense, de Leiria. O scanner micro-CT de raios X, assinala Bruno Camilo Silva, permite analisar o interior de um objecto e criar modelos para visualização a três dimensões. “E podemos, se quisermos, imprimir em 3D”.
“Esta história não está feita”, admite Vânia Carvalho, coordenadora do Museu de Leiria. “Não tenho nenhum objecto da mina”, salienta. A responsável apela à participação da comunidade e dá conta do desejo de ampliar o espólio disponível para a instituição. “Pode ser feita uma exposição digna sobre a mina? Com certeza”, reconhece. “Com os tempos que são os dos museus [longos] seguramente poderemos ter novidades”.
Comprar o terreno?
Actualmente inundada, a mina da Guimarota não é considerada segura para ser visitada. Até agora “não foi possível” a cedência de fósseis que se encontram no Museu Geológico em Lisboa e a coordenadora do Museu de Leiria não tem uma resposta definitiva sobre a pertinência da devolução a Portugal da totalidade dos fósseis que estão na Alemanha (o que tem acontecido, gradualmente) e que, por exemplo, Bruno Camilo Silva defende, com o argumento que são “património nacional” e que o acordo previa “a obrigatoriedade” de os materiais voltarem. “Há material que faz sentido que esteja exposto, há outro que é muito mais importante se estiver a ser estudado. E, felizmente, está nos laboratórios”, afirma Vânia Carvalho.
Thomas Silva, emigrado em França desde a década de 70, ainda guarda com zelo objectos e documentos relacionados com a mina da Guimarota. O que fazer? Primeiro, preservar “o acesso” e evitar que desapareça sob novas construções. Depois, um núcleo museológico: “Uma sala subterrânea”, nos cem metros iniciais. “É o equivalente a uma estação de metro”, com betão armado, escadas em cimento e um corrimão. “Sem perigo absolutamente nenhum”, argumenta. “Visitável” e com “condições para expor”. Talvez, “uma porta entreaberta para uma futura pesquisa científica”.
Depende, antes de mais, da autorização dos proprietários do terreno, que é privado. “Resta saber se devemos prescindir de um património que está ali que tem um valor inestimável”, questiona Thomas Silva. “Comprem o terreno ou uma parte do terreno”, propõe. “Meio hectare chegava”.
Cá fora, entretanto, os tesouros da mina da Guimarota, uma janela para o Jurássico, continuam a falar com os cientistas, lembra Vânia Carvalho. “Há mamíferos para estudar para a minha geração, para a dos meus trinetos, e material paleontógico para muitas e muitas equipas de investigação”.