Quando o plano abre, a câmara mostra que o metaleiro tatuado, de cabelo comprido, piercing no lábio inferior e rosto (só aparentemente) endurecido, está, afinal, em ameno convívio na cozinha da Dona Emília, que lhe serve uma chávena de chá. Noutro vídeo partilhado nas redes sociais do Nascentes, que se baseia no mesmo artifício de relação entre o detalhe e a escala maior, e começa com um elogio ao ar das Fontes dito em francês de Portugal, de novo a Dona Emília, a emergir de um mar de abraços com uma prancha de surf, à chegada do Mercedes migrante carregado de malas e saudades, e noutro, ainda, entre tantas imagens a transbordar de vida que preenchem a comunicação do festival realizado no concelho de Leiria, é o Zé Rola que se senta a tocar bateria e o Luís Coelho exibe o seu famoso abafadinho da adega do Nharro, provavelmente, o segredo mais mal guardado da aldeia onde nasce o rio Lis. Os habitantes da povoação são os protagonistas da mensagem que, este ano, fala da força que emana da fragilidade, e, por outro lado, da mudança provocada pela globalização, numa perspectiva que o programa reflecte do primeiro ao último dia, com músicos e bandas de 18 nacionalidades em concertos até ao próximo domingo, 7 de Julho.
Delicado e íntimo
A Fragil(idade) do Tempo é o título da fanzine produzida por Raquel Folião em colaboração com a livraria Arquivo agora lançada no Nascentes, com retratos e histórias de moradores das Fontes, o início de um projecto em que a equipa do festival (a cargo da Omnichord e da Ccer Mais, com direcção de Gui Garrido) ambiciona mapear toda a população da aldeia, rostos de um território especialmente delicado, generoso e curioso. Raquel Folião exalta-lhe o ritmo “mais produtivo”, naquilo a que chama a “essência do ser”, com espaço “para saber” e “cuidar” do outro. “Toda a gente se imagina a viver ali, ninguém tem perspectivas de sair” – ao contrário do verso na canção de António Variações. “Ali parece que encontramos as respostas às nossas questões”. Em pano de fundo, os anos que passam, experiência frágil, e diferente, no íntimo de cada um. O que cura? O que transforma? Que futuro permite?
“Tens de habitar o lugar para perceber a força que existe”, comenta Gui Garrido. “Na fragilidade há uma verdade, e depois, se dermos as mãos, provavelmente poderá haver uma superação”. E dificilmente existe melhor exemplo de força e superação do que o exemplo dos 5ª Punkada, convidados para abrirem o Nascentes, ontem, já depois do fecho da edição do JORNAL DE LEIRIA, com a estreia ao vivo do segundo álbum. É também de fragilidade que trata o novo disco de Samuel Martins Coelho, o último concerto da noite de quarta-feira, a apresentar, pela primeira vez, Extinção, editado através da Omnichord numa caixa com objectos para reflectir sobre a crise ambiental que ameaça a presença no planeta como o conhecemos.
Um mundo com mais mundo
De que é que o mundo precisa? Mais uma vez, há respostas nas palavras com que o Nascentes comunica na internet e nas placas junto ao rio onde habitantes, visitantes e festivalantes vão a banhos. “Mais empatia e amor”, “mais intimidade”, “mais caminhos”. Numa frase: “O mundo precisa de mais mundo”. O cartaz de concertos – mas não só – oferece-o. Um programa materializado em parceria com voluntários e com a Associação Cultural e Recreativa Nascente do Lis “que traz subtexto sobre a globalização, sobre os muros que erguemos”, realça Gui Garrido. “O mundo mudou” e o festival rejeita “discursos racistas, xenófobos, misóginos, homofóbicos”.
Com o “afro-psicadelismo” dos BCUC, “a música de inspiração globetrotter” dos Collignon, a “reinterpretação” de Verde Prato “sobre a língua e cultura basca”, com “a diáspora musical das Américas, Ásia e África” dos Yeli Yeli, “o mergulho nas águas culturais da identidade do Nordeste brasileiro” dos Rastafogo, a reconstrução que as Haepaary fazem de “ancestrais tradições” sul-coreanas, com os alertas dos Insan Insan “sobre a legitimidade dos líderes políticos e a defesa da liberdade sob o manto da riqueza da música árabe”, a “folk e pop iemenita” dos El Khat, “a ponte transatlântica entre Cabo Verde e Amazónia” dos Arapucagongon, com “o hipnotismo dos teclados sírios” de Rizan Said e “o imaginário” do cabo-verdiano Claiana, mas, também, com a “salsa caldeirão cultural” dos La Tremenda Sonora e “a urgência do rock experimental e a improvisação do jazz” dos O., o Nascentes quer contribuir para que “os discusos se alterem”. E, no processo, estabelecer “um lugar de liberdade e respeito para qualquer pessoa, independente da sua identidade de género, etnia, sexo, idade e classe”.
Durante cinco dias que são uma troca entre quem está e quem chega, a organização espera criar uma comunidade sustentável e acessível, sinalizada por fronteiras que unem e que não separam. Com escuta e intimidade. E com o menor impacto possível, apesar da estimativa de oito mil pessoas que, em 2023, se terão juntado à festa.